Artigo publicado originalmente no Portal da Rádio Itatiaia em 11/06/2025 - Disponível neste Link: https://www.itatiaia.com.br/colunas/donald-trump-nao-e-liberal
Nunca as palavras significaram tão pouco como em nossos tempos. Hoje, os conceitos políticos “liberal”, “comunista”, “conservador” e “progressista” são usados como armas retóricas, etiquetas rasas que mais confundem do que esclarecem. Se alguém defende programas sociais mínimos, logo é taxado de “comunista”. Quem ataca a imprensa se declara “liberal”. Quem concentra poderes absolutos se autodenomina “democrata”. É nessa salada semântica, nesse vazio conceitual, que aparece uma das grandes distorções políticas atuais: a ideia de que Donald Trump é liberal. Não é. Os fatos e a história provam isso. Vamos a eles.
O liberalismo surgiu entre os séculos XVII e XVIII como uma resposta direta ao poder absoluto dos reis. Naquele sistema, o rei concentrava toda a força política e religiosa em suas mãos. Como reação, pensadores liberais começaram a defender um novo tipo de organização social. O grande pioneiro dessa corrente foi o filósofo inglês John Locke, que argumentava que todo indivíduo possui direitos naturais (à vida, à liberdade e à propriedade) e que a função do governo era, acima de tudo, proteger esses direitos. Eles propunham limitar o poder do Estado para proteger os indivíduos de abusos e garantir direitos básicos, como liberdade de expressão, propriedade e liberdade religiosa. Para eles, um governo só era legítimo se representasse os interesses dos cidadãos, e não por um suposto “direito divino”.
Um exemplo elucidativo é o do pensador e estadista irlandês Edmund Burke (1729-1797). Embora hoje seja considerado o pai do conservadorismo moderno, Burke foi um ferrenho defensor das liberdades e apoiou a independência dos Estados Unidos. Ele argumentava, em seus discursos e escritos, que a verdadeira política nasce do consentimento do povo e do respeito às tradições de liberdade, não da imposição arbitrária de um governante.
É justamente por isso que Trump se afasta completamente desse legado. Em vez de defender a autonomia das universidades, ele ameaçou cortar verbas federais de instituições como Harvard por discordar de protestos no campus. Na prática, isso é usar dinheiro público para punir quem pensa diferente, o exato oposto do espírito liberal, que vê a universidade como um espaço para o debate livre. Além disso, Trump propôs limitar a presença de estudantes estrangeiros nas universidades americanas, uma medida que prejudica a troca de conhecimento e de cultura, que é essencial para um liberalismo que valoriza o diferente. Cortar recursos ou fechar as portas para quem vem de fora equivale a fechar a janela para o mundo, empobrecendo toda a sociedade.
Na economia, a distância também é enorme. Logo no início de seu governo, Trump já havia chocado o mundo com um forte e atabalhoado tarifaço. Agora, nesta semana, aumentou as tarifas sobre aço e o alumínio. Essa medida pune o Brasil e atinge em cheio o coração da economia de Minas Gerais, já que nossas siderúrgicas, que geram milhares de empregos no estado, estão entre as maiores fornecedoras para os EUA.
Para os pensadores econômicos liberais, como Adam Smith, a ideia é simples: o comércio livre entre países gera produtos mais baratos, mais inovação e mais empregos para todos. Quando um governo cria barreiras, como as que Trump propõe, ele protege um pequeno grupo de empresários e prejudica todo o resto. O resultado é sempre o mesmo: o consumidor paga mais caro, outros países revidam com suas próprias taxas e, no fim, a economia inteira perde. Essa atitude, que ele chama de “proteger empregos”, é o exato oposto do pensamento liberal: em vez de construir pontes para o comércio, ele as dinamita, deixando o mercado e as pessoas mais pobres e inseguras.
Outro ponto fundamental é o ataque às instituições. Um dos pais do liberalismo, John Stuart Mill, já ensinava que as instituições (um Judiciário independente, uma imprensa livre e o respeito às regras) não são enfeites. Elas existem para uma coisa: proteger o cidadão comum do poder excessivo do governante e do Estado. Trump continua pressionando o judiciário após decisões contrárias à sua agenda e mina, inclusive, a independência de órgãos técnicos. Isso ficou evidente durante a pandemia, quando sua gestão tentou alterar relatórios científicos do Centro de Controle de Doenças (CDC) e pressionou a agência reguladora de medicamentos (FDA) a aprovar tratamentos sem o devido respaldo técnico. Ademais, insiste em críticas excessivas e destemperadas à imprensa.
Como alertou o pensador Alexis de Tocqueville, não há liberdade sem instituições sólidas. O entusiasmo de uma multidão ou o carisma de um líder não substituem a importância de regras claras e de um Estado que serve a todos, e não a uma só pessoa. Quando essa proteção se desfaz, o que resta não é liberdade, mas sim o poder concentrado na figura de uma só pessoa. E isso é sempre um risco para a democracia.
A confusão dos nossos tempos deixa qualquer discurso à mercê de rótulos vazios. Mas os fatos ainda importam. E os fatos mostram que Trump, embora use a palavra “liberdade” como bandeira, age com autoritarismo: persegue quem discorda, interfere em instituições, pune universidades e promove desinformação. O liberalismo, mesmo com suas contradições, é uma forma de pensar que busca impor freios ao poder, proteger as liberdades de cada um e valorizar a diversidade de opiniões. Reduzi-lo a um rótulo de conveniência não é só erro, é má-fé.
Por isso, é preciso dizer com clareza: Donald Trump não é liberal. Permitir que ele se apresente como tal é abrir caminho para o autoritarismo. Reafirmar essa diferença não é só uma questão semântica, é resgatar o verdadeiro sentido da liberdade e fortalecer a democracia, mesmo num cenário global cada vez mais complexo e superficializado.
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