Alisson Diego *
Em meio a tantas destemperadas manifestações políticas delirantes ocorridas no dia 7 de setembro, algumas posições firmes em defesa da democracia merecem os aplausos de todos os democratas brasileiros. Além de movimentos sociais e políticos, setores importantes da indústria e do agronegócio se manifestaram, veementemente, em defesa do Estado Democrático de Direito, opondo-se aos desvarios golpistas do presidente Bolsonaro e seus asseclas mais “intransigentes”.
No fim de agosto, entidades do setor agroindustrial divulgaram uma nota em defesa da harmonia político-institucional e salientaram a preocupação com a instabilidade econômica e social no país. "As amplas cadeias produtivas e setores econômicos que representamos precisam de estabilidade, de segurança jurídica, de harmonia, enfim, para poder trabalhar", expressa relevante trecho do comunicado.
O posicionamento mais vigoroso, no entanto, não partiu do mercado ou do mundo político, mas da Igreja Católica, mais precisamente da CNBB, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. O documento se destaca pela defesa consistente do sistema democrático e pelo tom assertivo e notadamente contrastante aos valores do bolsonarismo.
Mais do que um recado indireto, a Igreja Católica, na voz de dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte e presidente da CNBB, enviou uma mensagem direta para Bolsonaro e seus prosélitos ao afirmar: “Não se deixe convencer por quem agride os poderes Legislativo e Judiciário. A existência de três poderes impede a existência de totalitarismos”. O arcebispo argumenta que não é possível aceitar, independentemente das convicções político-partidárias de cada um, agressões aos pilares que sustentam a democracia. Agredir, eliminar, hostilizar, ignorar ou excluir, de acordo com Dom Walmor, são verbos que não combinam com um sistema democrático.
O arcebispo destaca, ainda, a Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos), publicada pelo Papa Francisco, em outubro de 2020, e que deve inspirar cuidados com aqueles que sofrem. “A fome é realidade de quase 20 milhões de brasileiros. Aquele pai que não tem alimento a oferecer para o próprio filho é seu irmão. Nosso irmão. Do mesmo modo, a criança e a mulher feridas pela miséria são suas irmãs, nossos irmãos e irmãs”, disse Dom Walmor.
O presidente da CNBB defende que os católicos e cristãos não podem ficar indiferentes à realidade que mistura desemprego e alta inflação, num contexto agravado pela pandemia, situação que acentua as exclusões sociais. A saída, argumenta dom Walmor, está na implementação urgente de políticas públicas que garantam a retomada da economia e a inclusão dos mais pobres no mercado de trabalho.
Aos armamentistas insensatos (não aqueles que praticam tiro esportivo, por exemplo, mas aqueles que prestam idolatria às armas e reforçam uma cultura “anti-paz”), Dom Walmor envia mais um recado direto: “Quem se diz cristão ou cristã deve ser agente da Paz e a paz não se constrói com armas. Somos todos irmãos. Esta verdade é sublinhada pelo Papa Francisco na carta encíclica Fratelli Tutti”.
Papa Francisco acena aos fiéis no Vaticano / Crédito editorial: Neneo / Shutterstock.com |
Ao demonstrar um raro senso histórico, em harmonia com o pensamento vanguardista decolonial, que tem crescido exponencialmente nas universidades e precisa ganhar a consciência popular, Dom Walmor sentencia: “Nossa pátria não começa com a colonização europeia. Nossas raízes estão nas matas e florestas, num sinal claro nos ensinando que a nossa relação com planeta deve ser pautada pela harmonia. Os povos indígenas, historicamente perseguidos e dizimados, enfrentam graves ameaças do poder econômico extrativista e ganancioso que tudo faz para exaurir nossos recursos naturais”.
As palavras da CNBB, vocalizadas pelo arcebispo belorizontino, são assertivas e muito bem-vindas num tempo em que a outrora sonhada concórdia tem dado lugar, cada vez mais, a um divisionismo inaceitável no seio da sociedade brasileira, estimulado pelos reiterados discursos de ódio patrocinados pelo bolsonarismo. Se o presidente da República não passa de um desprezível tiranete ou como diria meu avô: “um político bobo de inteligência curta”, os seus discursos delirantes e odiosos impactam muitas pessoas ingênuas que não conseguem ultrapassar as maledicentes narrativas de WhatsApp.
Posicionamentos firmes e coerentes, como este da CNBB, são imprescindíveis no combate ao fanatismo e à ignorância. É preciso proclamar consciência cristã, racionalidade e senso histórico a essa gente inescrupulosa que sequestra os símbolos nacionais, manipula a religiosidade alheia e se esconde por trás de malfeitos indefensáveis (“rachadinha”, por exemplo, é um nome eufemístico utilizado por parte da mídia para abrandar os crimes gravíssimos cometidos pela família Bolsonaro: organização criminosa, lavagem de dinheiro e peculato, conforme consta da denúncia do Ministério Público).
Sabemos que não há cenário para um golpe de Estado, ao menos não um golpe clássico engendrado na caserna como o ocorrido em 1964. Sobretudo, por fortes pressões internacionais, um regime autocrático no Brasil de hoje não duraria nem seis meses. O que está em jogo, portanto, é a defesa da democracia enquanto ambiente político necessário ao amplo desenvolvimento humano e, por consequência, o desenvolvimento da própria nação brasileira. Trata-se de enxergar o outro(a) como irmã/irmão e não como alguém a ser eliminado(a) por pensar diferente, trata-se de respeitar o outro(a) em suas diferenças e não o ridicularizar por isso, trata-se de buscar um espaço de convergência e diálogo e não estimular o conflito e a indiferença. Quando se fala em democracia e valores cristãos, fala-se, precipuamente, em solidariedade e tolerância.
A Igreja Católica, na representação de Dom Walmor e da CNBB, ao reforçar o compromisso com a democracia e refutar os antivalores disseminados pelo bolsonarismo, atesta que os verdadeiros princípios cristãos somente se realizam plenamente se harmonizados com os valores democráticos.
* Artigo publicado pelo Jornal Cidades em setembro de 2021.