sábado, 28 de setembro de 2024

Resenha de Neoliberalismo Autoritário

 A resenha de Neoliberalismo Autoritário: A Racionalidade que Gerou o Bolsonarismo, publicada no site da ANPOF em 15 de setembro de 2024, foi escrita por Dalmo Buzato, linguista e pesquisador da UFMG, e Thomaz de Castro, doutorando e professor de Comunicação Social também pela UFMG. O texto analisa as principais ideias do livro, destacando a conexão entre neoliberalismo e autoritarismo no Brasil e seu papel na ascensão do bolsonarismo. Para acessar a resenha no site da ANPOF, clique aqui.  

O lançamento da obra acontecerá no XX Encontro Nacional da ANPOF, entre 30 de setembro e 4 de outubro de 2024, em Recife, Pernambuco. O evento, considerado o maior da filosofia no Brasil, será realizado nas dependências da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco, reunindo acadêmicos para discutir temas filosóficos de relevância global.



Neoliberalismo autoritário: A racionalidade que gerou o bolsonarismo  

Dalmo Buzato Linguista e pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 

Thomaz de Castro Doutorando pela UFMG; professor e pesquisador de Comunicação Social 

25/09/2024


Nesta resenha apresentamos o livro “Neoliberalismo autoritário: a racionalidade que gerou o bolsonarismo”, de Alisson Diego Moraes, lançado pela Editora Dialética em 2023, obra que resulta da dissertação de mestrado em Ciências Sociais pela PUC-MG do autor. Trata-se de uma análise das potenciais relações entre tendências autoritárias e o neoliberalismo no Brasil da última década. Digna de nota é a experiência pessoal do autor, político mineiro com duas décadas de experiência na gestão pública, além de intelectual comprometido com a reflexão sobre as características da política brasileira contemporânea.  

A inquietude do autor com as jornadas de junho de 2013 e a sua vivência como ator executivo político levaram-no a adentrar as nuances do neoliberalismo à brasileira, que por sua vez converge frontalmente com o histórico autoritarismo nacional, que reúne racionalidade econômica e militarismo para garantir a implantação do regime neoliberal enquanto projeto de estruturação da sociedade: esta conjunção de variáveis é histórica na América Latina, indo do advento da experiência chilena com Pinochet até o momento presente, e pré-condição para o bolsonarismo, que representa um movimento político autoritário convergente com os aparelhos de segurança formais (forças armadas e policiais) e informais (milícias e a Bancada da Bala) no Congresso Nacional – observado também a articulação destas com os setores conservadores, religiosos e ligados ao agronegócio.  

Logo, o objetivo central dessa obra é analisar quais e como se dão, no Brasil, as conexões sociopolíticas e ideológicas entre o neoliberalismo e o autoritarismo, e como esse somatório se condensa na figura de Bolsonaro, que se viabiliza pelo processo histórico global de esgarçamento das instituições democráticas a partir de dentro, sem rupturas violentas como a de 1964 (ainda que esteja em curso um processo judicial para apurar a culpabilidade dos envolvidos com a ‘Minuta do Golpe’ de 2022) e amplamente apoiado nos meios digitais para conectar o líder aos seus apoiadores. E, para tanto, o autor explora o neoliberalismo e seus veios autoritários no Brasil desde seu nascedouro e passando por um panorama histórico dos governos iniciais da Nova República, o governo FHC e o neodesenvolvimentismo dos quase 16 anos do PT, para enfim culminar na expressão do neoliberalismo autoritário por meio do golpe de Dilma Rousseff e seus desdobramentos na eleição de 2018.  

Portanto, o autoritarismo pragmático neoliberal vem se instalado com a garantia de supostos benefícios imediatos materiais difusos em toda a sociedade, baseado num populismo (entendido, grosso modo, como uma redução da política a um discurso de dualismo entre um povo versus uma elite corrupta) que corrói a democracia liberal e combate a mediação das instituições e do ordenamento jurídico com o cidadão, de forma oportunista para suas causas e dizendo advogar legitimamente por uma suposta autêntica vontade popular. Esses partidos têm conseguido na atualidade o aporte de parte do centro ideológico, e pesquisas em seis países sugerem que os eleitores jovens consideram menos essencial “viver numa democracia” do que obter as condições imediatas de sobrevivência diante de cenários de desemprego, crise do bem estar social e das políticas sociais como um todo, dentre outros fatores, que no conjunto condensam as frustrações com a representação política inerente à democracia liberal.  

Resta inexorável a conclusão de que vivemos um retrocesso democrático potencializado pelas novas tecnologias que promovem comunicações a um só tempo massificadas e desreguladas, operando não só na brecha da lei como também à margem dessa quando existe. Portanto, a reflexão promovida por esta obra é bastante relevante por se encaixar no cenário atual de participação de figuras autoritárias, populistas e neoliberais não só no Brasil como em todo o mundo, ainda que focada na transformação histórica do pensamento reacionário nacional, que estará na arena quando das eleições municipais desse ano de 2024.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Um sofista aloprado: Pablo Marçal e o eco de uma sociedade desesperada

* Artigo originalmente publicado no Portal Sagarana Notícias em 22/09/2024 - disponível neste link


O voto de protesto, uma característica recorrente na história política do Brasil, sempre encontrou terreno fértil em momentos de crise e desencanto popular. Não é demais lembrar que o país elege, de tempos em tempos, figuras como o humorista Tiririca, que ironicamente utilizou como patético slogan de campanha o "pior que tá, não fica". O eleitor brasileiro tem recorrido ao voto contestatório como uma forma de manifestar sua insatisfação com o status quo, o establishment político nacional. Seria justo, se não fosse tão tragicômico.

Essa prática escancara uma profunda (e até compreensível) frustração com a incapacidade das instituições políticas de responderem eficazmente às demandas populares e tem gerado uma sucessão de personagens excêntricos que emergem no cenário eleitoral com promessas lastimavelmente simplistas, vazias e/ou inflamadamente retóricas.

Isso é mais velho do que andar para trás, como ouvi muitas vezes em Itaguara. O "novo já nasce velho", parafraseando a canção de O Rappa, reflete bem a constante reciclagem de discursos vazios que presenciamos ao longo da história política. Desde a Grécia antiga, a política tem sido palco de retóricas que se distanciam da racionalidade e da verdade, utilizadas apenas para manipular e convencer, mesmo quando esses discursos são desprovidos de substância ou dignidade.

Górgias de Leontini, um dos sofistas mais influentes de sua época (século V a.C.), afirmava que "o poder da palavra é capaz de enganar até os mais sábios". Ele compreendia que a retórica, quando habilmente utilizada, subjugava a verdade e dominava as massas, sem a necessidade de se apoiar em princípios verossímeis ou éticos. O que observamos hoje, portanto, não é nada novo. São ecos de uma prática antiga — a manipulação prevalece sobre a honestidade, e a forma se sobrepõe ao conteúdo. O que se vê atualmente é a prática de Górgias nos tempos da teatralidade, dos palcos midiáticos e das fake news, uma verdadeira "Era do Espetáculo", como tão bem expressou Guy Debord (1931-1994).

No entanto, essa "Era do Espetáculo" que Debord antecipou é agora amplificada pelo neoliberalismo, que esvaziou a política de sua substância e reduziu o Estado a um mero gestor econômico. A lógica neoliberal, ao enfraquecer a capacidade estatal de prover serviços e responder às necessidades mais básicas da população, criou as condições ideais para a ascensão de líderes que, ao invés de oferecer soluções concretas, utilizam-se de retórica simplista e inflamadora para preencher o vazio deixado pela política tradicional. O desmonte do Estado é, de certa forma, o pano de fundo de uma crise de representação que encontra no voto de protesto seu sintoma mais evidente.

Pablo Marçal é apenas mais recente exemplo desse fenômeno. É um discípulo despreparado da famigerada escola anti-socrática de Górgias. No entanto, diferentemente de figuras como Tiririca, cuja candidatura era pautada na crítica ao sistema político por meio do humor, Marçal representa um novo tipo de sofista: efetivamente despreparado, mas incrivelmente astuto em explorar as brechas e carências de uma sociedade ávida por alternativas políticas e exausta após anos de sofrimento diante de inércias e impotências do poder público. Sua ascensão rápida e inesperada para analistas políticos desatentos é, na verdade, um claríssimo sintoma de uma crise muito mais ampla e profunda, caracterizada pela desilusão com os tradicionais mecanismos de representação, somada à incapacidade de um Estado cerceado pela ambiência neoliberal de prover minimamente as carências básicas da população. Essa "janela de anti-oportunidades" esteve escancaradamente aberta para que lideranças oportunistas e carismáticas, como Marçal, se utilizassem da sedutora retórica do marketing digital e da economia da atenção para canalizar o descontentamento popular, criando uma narrativa que, embora vazia de soluções concretas, é eficaz em mobilizar emoções e atrair seguidores desiludidos.

Nessa lógica, vale também lembrar o papel que as redes sociais desempenham como plataforma privilegiada para a manipulação emocional. A economia da atenção, amplificada pelo algoritmo que premia o sensacionalismo e a polêmica, criou um ambiente fértil para sofistas contemporâneos. Nesse cenário, as fake news se tornaram armas poderosas, permitindo que figuras como Marçal transformem a desinformação em capital político. A regulação da mídia e das redes sociais, portanto, torna-se uma necessidade urgente para evitar que o debate público seja sequestrado pelo caos e pelo populismo digital.

Vale lembrar que o termo “sofista”, que remonta à Grécia Antiga, refere-se a um grupo de pensadores que eram mestres na arte da retórica e da persuasão, sem qualquer compromisso com a realidade fática. Na época, os sofistas eram criticados por filósofos como Sócrates e Platão, que os acusavam de mercantilizar o conhecimento e distorcer a verdade em benefício próprio. Essa crítica parece ressoar fortemente na figura de Marçal, que, assim como os sofistas de outrora, se utiliza de um discurso manipulado para vender uma imagem de sabedoria e sucesso, sem, contudo, possuir a substância que justifique sua influência.

Entretanto, ao contrário dos sofistas clássicos, que possuíam uma técnica refinada de argumentação, Marçal recorre a estratégias vulgares e simplistas, reminiscentes do que na cultura da internet contemporânea se conhece como a “síndrome do pombo enxadrista”. Essa expressão, que surgiu a partir de um comentário feito em 2005, descreve o comportamento de alguém que, sem argumentos substanciais, desestabiliza o debate com atitudes ofensivas, derruba as peças do tabuleiro e ainda sai cantando vitória. Em outras palavras, trata-se de uma técnica inferior de debate, onde, ao invés de se engajar em uma discussão construtiva, o indivíduo recorre a falácias e provocações, proclamando-se vencedor de um embate que nunca foi, de fato, travado.

Essa “síndrome do pombo enxadrista” não é apenas uma tática de Marçal, mas sim a essência de sua estratégia política. Ele transforma o debate público em um jogo no qual as regras tradicionais são desprezadas em favor do "caos controlado" - o importante nunca será o conteúdo, mas a capacidade de gerar polêmica e engajamento. Marçal, ao encarnar essa postura, desvirtua o debate político e subestima a inteligência do eleitorado ao reduzir questões complexas a slogans vazios e a promessas ilusórias. Seu comportamento, amplificado pela natureza efêmera e superficial das redes sociais, transforma o processo político em um espetáculo grotesco, no qual a substância é substituída pelo barulho, e a retórica vazia pelo oportunismo.

O sucesso de Marçal, no entanto, não se deve apenas às suas habilidades de auto-promoção. Ele é o produto de uma sociedade que, esgotada por anos de promessas não cumpridas e desilusões políticas, e impossibilitada de encontrar no Estado neoliberal uma resposta efetiva para suas necessidades básicas, se agarra a qualquer alternativa que pareça oferecer uma saída do ciclo de sofrimento e desesperança. Em um contexto onde o poder público falha repetidamente em atender às necessidades mais fundamentais da população, figuras como Marçal encontram eco em um eleitorado que já não sabe em quem confiar e vê na ruptura radical com o sistema uma possível solução.

O que essa ascensão populista revela é que não estamos apenas diante de um problema individual, mas de uma falha estrutural nas bases do Estado neoliberal. Quando o Estado é esvaziado de seu papel de provedor, as brechas deixadas são rapidamente ocupadas por oportunistas que oferecem soluções rápidas e simplistas. Assim, o neoliberalismo cria o terreno perfeito para o populismo, pois ao deixar de atender às necessidades da população, abre espaço para narrativas messiânicas que prometem a salvação sem o devido preparo ou competência.

Marçal, porém, é um sintoma, não a cura. Sua ascensão é um alerta sobre o estado crítico de nossa democracia e a urgência de se repensar as bases de nossa representação política. O voto de protesto que o impulsiona é, em última análise, um grito de socorro de uma sociedade que clama por líderes que sejam, de fato, preparados e comprometidos com a verdade, e não meros vendedores de ilusões. A analogia com os sofistas da Grécia Antiga se revela aqui não apenas como uma crítica à superficialidade, mas como um alerta sobre os perigos da manipulação do discurso em um cenário democrático.

O filósofo alemão Jürgen Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, destaca a importância de um discurso racional e transparente para a manutenção de uma esfera pública saudável. Para Habermas, a verdade e a legitimidade só podem emergir em um ambiente onde os interlocutores estão comprometidos com a sinceridade e a busca pelo entendimento mútuo, algo que está ausente na prática política de Marçal. O sofista moderno, ao contrário, se vale da manipulação emocional e da dissimulação para ganhar vantagem, corroendo os fundamentos do discurso democrático.

Nesse sentido, a educação política e o fortalecimento das instituições democráticas tornam-se ferramentas essenciais para combater o avanço de sofistas modernos. Somente com um eleitorado mais consciente e instituições mais transparentes será possível barrar o ciclo vicioso de desinformação e manipulação. A sociedade precisa se armar com o conhecimento, não apenas como defesa contra demagogos, mas como um meio de restaurar a confiança no processo democrático e evitar que figuras como Marçal prosperem em um cenário de caos.

A história já nos mostrou os perigos de se entregar o poder a demagogos. Cabe agora à sociedade, e principalmente às instituições democráticas, a tarefa de desmascarar os sofistas contemporâneos e oferecer alternativas reais que resgatem a confiança do povo no processo democrático. Enquanto isso não acontece, figuras como Pablo Marçal continuarão a surgir, explorando o desespero popular e perpetuando um ciclo vicioso de desinformação e charlatanismo.

Para além da crítica, o caminho está na reconstrução de uma esfera pública onde o debate seja racional e as promessas sejam baseadas em projetos concretos. O engajamento cívico consciente, aliado à reforma das práticas eleitorais e ao combate à desinformação, pode transformar o cenário político. Em tempos de crise, a filosofia nos lembra da importância de questionar, de buscar o conhecimento e de valorizar a verdade. Somente através dessa busca constante é que poderemos superar os sofismas modernos e construir uma sociedade mais justa e esclarecida. O desafio é grande, mas o compromisso com a verdade e com a racionalidade no discurso público é a única saída para evitar que a política se torne um tabuleiro de xadrez devastado por pombos enxadristas.


Referências Bibliográficas

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

GÓRGIAS DE LEONTINI. Oração Fúnebre. In: Discursos. São Paulo: Hucitec, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa: Racionalidade da Ação e Racionalização Social. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.