Certa vez, um amigo me disse, após ouvir atenta e empaticamente, as minhas lamúrias a respeito das parvidades da vida pública, que a política, definitivamente, não era um ambiente para pessoas de bem como eu. “Larga isso, não faz bem a pessoas de caráter, não lhe faz bem”. Um conselho assaz exagerado em meu entendimento. Discordei prontamente e ponderei a ele que a política, se exercida com dignidade e princípios, é uma nobilíssima missão humana, como muito bem destacou o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), um dos mais importantes filósofos de todos os tempos e o que mais influenciou a nossa sociedade.
O pensador estagirita dizia que, tanto a política quanto a ética (que estariam, segundo ele, num mesmo sistema), possuíam o mesmo objetivo: levar-nos para um caminho virtuoso a fim de alcançar a felicidade. Em que consistiria esse caminho? De acordo com Aristóteles, em seus escritos sobre ética, a verdadeira finalidade da vida humana se expressa no atingimento de uma “vida boa”. Para ele, ser feliz e ser útil à comunidade eram dois objetivos que se justapõem. Isto é, ambos estavam fortemente manifestos na atividade pública. O governo mais satisfatório, ponderava, seria "aquele em que cada um encontra o que necessita para ser feliz".
"Toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras, tem mais que todas, este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política" (Pol., 1252a).
Aristóteles nos convoca para a vida pública, virtuosa, coletiva, almejando sempre a felicidade geral, o bem de toda a comunidade, o que também acarretaria, por óbvio, na felicidade individual. O bem comum consiste na ideia central do pensamento político de Aristóteles.
A prática da atividade política em nossos tempos, sobretudo no Brasil, não tem se aproximado do que apregoou o marcante pensador do século V antes de Cristo. Assistimos a tudo na política, menos a legítimos interesses coletivos, afastados da passionalidade doentia e do patrimonialismo enraizado em nossa cultura. Em poucas palavras, pode-se dizer que a política em nossos tempos é tóxica!
Ciro Gomes disse numa entrevista, salvo engano em 2015, que precisava de um tempo para se “desintoxicar da política”. Ficou um período afastado da cena pública brasileira, sem se candidatar a nada (voltou no ano passado quando se candidatou à presidência da república, acabando em terceiro lugar).
Ciro, um político calejado, que já foi prefeito de capital, ministro da Fazenda e da Integração Nacional, secretário de estado, governador e deputado sabe muito bem do que fala. Reconhece, pois, que a política não é um ambiente harmonioso e salutífero (tal qual idealizado por Aristóteles), onde os políticos se apropriem dos nobres propósitos aristotélicos da virtude, do bem comum e da ética. Pelo contrário, trata-se de uma arena tóxica, altamente peçonhenta e contaminada por desvirtudes de toda sorte.
Não quero dizer que todos as pessoas de caráter devem deixar a política. Muito pelo contrário, se o fazem, estarão entregando uma das mais nobres atividades humanas aos maliciosos. O que quero demonstrar cabalmente é que é impossível para alguém de bom caráter não sofrer (e muito) neste ambiente.
Tomemos dois exemplos: Quando ainda era prefeito, recebi um processo criminal ambiental por ter, teoricamente, mantido um “lixão” no município – para a minha grande surpresa, porque foi justamente em minha gestão que demos um fim ao incômodo lixão (que existiu por décadas em Itaguara), recuperamos a área, licitamos o serviço de coleta e o profissionalizamos repassando ao SAAE, tal como preconiza a lei 11.445 de 2007. Mas o Ministério Público não entendeu assim e me denunciou à Justiça. Tive de contratar advogado e ficar com esse peso em minha proba vida pública por um bom tempo. Alguns meses após a denúncia ofertada, conseguimos vencer na justiça e os desembargadores não acataram a ação proposta pelo MP.
O outro exemplo: um prefeito de uma cidade média de Minas Gerais foi preso numa operação midiática da Polícia Federal por, supostamente, ter desviado vultosos recursos públicos. Foram muitas manchetes de jornal, matérias de televisão e exposição de todo tipo (acho que o caso chegou até mesmo a ser transmitido no Jornal Nacional). Ficou uma semana detido. Depois reassumiu o cargo e até se candidatou à reeleição (foi corajoso, mas acabou perdendo nas urnas). Quase 10 anos depois dessa famigerada ação que arruinou a sua vida política e pessoal, o ex-prefeito foi absolvido. Sim, absolvido! Na verdade, ele não tinha qualquer envolvimento com os desvios que aconteceram no município. Após a absolvição, não vi uma nota sequer nos jornais, nem uma matéria de poucos segundos na TV. Ao encontrá-lo, outro dia nos corredores de um shopping, deparei-me com um homem completamente desolado e que ainda pensa em voltar a ocupar cargos públicos para, segundo ele, “lavar a sua honra”.
A grande verdade é que bons políticos, aqueles que não se deixam levar pela vaidade, pelo poder, pelo orgulho ou pelo dinheiro, são, lamentavelmente, minoritários. Mas eles existem e, inevitavelmente, sofrem muito na vida pública, por causa de generalizações impertinentes, ações propostas pelo MP sem a devida apuração prévia, infâmias de toda ordem e por não coadunarem com as práticas costumeiras do meio político. Conheço dezenas de políticos eficientes e honestos que abandonaram a vida pública por essas razões.
Então, qual seria a saída? Devemos, uma vez mais, recapitular Aristóteles que evidencia a importância da educação para engendrar o prolífico caminho para a vida pública. É papel da educação formar adequadamente o caráter do aluno. Ninguém nasce virtuoso, o filósofo destaca. É preciso aprender a virtude e praticá-la. Não há virtude sem o hábito, sem a prática diária, ou seja, o exercício virtuoso e sua formação precisam se dar em casa, na escola e em sociedade. Se, por um lado, constatamos que temos falhado sistematicamente enquanto sociedade na construção de uma política virtuosa, por outro, também é possível vislumbrar a saída: é pela educação, pela prática da virtude e pela vida comunitária que melhoraremos a prática política.
Uma das melhores analogias que encontrei é a do bombeiro. Esse profissional sabe que terá de enfrentar fumaça altamente danosa a seus pulmões, sabe que pode se queimar, sabe que pode até mesmo morrer, mas não deixa de entrar num prédio em chamas para salvar uma vida. A política é mais ou menos assim.
É bom lembrar que um bombeiro, após muito tempo neste trabalho árduo, precisa descansar, cuidar de seus pulmões e reabilitar a sua saúde física e mental antes de pensar em voltar a debelar labaredas. Após este tempo, pode ser que volte à ativa. Pode ser que não. Na vida, não há apenas escolhas, há contingências.
* Alisson Diego Batista Moraes, 34, advogado, possui MBA em Gestão de Empresas pela FGV e bacharelado em Filosofia pela UFMG. Foi prefeito de Itaguara entre 2009 e 2016 e vereador entre 2005 e 2008.
** Artigo publicado pelo Jornal Minas, Itaguara/MG, dezembro de 2019.