Quem eles pensam que são? *
Devo confessar que não me apraz utilizar esta coluna novamente para abordar a pandemia e/ou as ações (e omissões) do governo federal. Isso porque o fiz em abril e é sofrível escrever sobre assuntos incômodos. Na última coluna, poeticamente, homenageei a nossa valorosa Biblioteca Pública Guimarães Rosa por ocasião das bodas de ouro – como é agradável falar de cultura, educação, história e lembranças. Não queria mesmo retornar a assuntos áridos, mas ao colunista engajado não é permitido se omitir e, como governança e pandemia são os debates públicos mais importantes do Brasil no momento (e o jornal cumpre esse importante papel de elucidar fatos), vejo-me no dever inafastável de abordar, uma vez mais, a temática.
Em 30 de março, quando escrevi o meu último texto sobre esta mesma temática para este jornal, o Brasil contabilizava 4.579 casos confirmados e 159 mortes e a nossa região não contabilizava nenhum registro. Hoje, dia 25 de junho, somamos mais de 1.2 milhões de infectados e mais de 55 mil vidas ceifadas. E a nossa região possui casos de covid-19 em todos os municípios (inclusive com óbitos sendo investigados). De quebra, a nação brasileira, de acordo com vários especialistas, pode tornar-se, em alguns dias, o novo epicentro da pandemia. O que houve de lá para cá?
Antes de responder à questão devo ressaltar que não possuo vícios de partidarismo ou qualquer tipo de passionalidade política. Entretanto, também posso dizer que não sofro de miopia sociopolítica (basta-me a real, aquela que acomete as minhas córneas). Como brasileiro que ama esse país e estuda as questões brasileiras desde sempre, torci (não sem justificada desconfiança, mas torci) para que o governo federal desse certo e ao menos fosse pujante e nacionalista – conseguindo impulsionar a economia, combatendo a criminalidade e gerando emprego e renda para os brasileiros. Se não fosse capaz de combater as desigualdades, melhorar nossa educação, cuidar da saúde, robustecer nossa frágil infraestrutura, ao menos que pudesse, então, por meio de um crescimento econômico baseado na confiança do mercado, criar oportunidades de trabalho para tantos pais e mães de família necessitados. Mas, infelizmente, até agora, nem a mais baixa das expectativas se cumpriu. E o pior: surge uma pandemia que escancara a falta de comando no executivo federal. Na verdade, é pior do que uma pura e simples falta de comando, é um comando atroz, abjeto, tosco e nauseante.
Não faço coro com aqueles que dizem que fascistas elegeram Bolsonaro. O Brasil não possui 58 milhões de fascistas e/ou pessoas com pensamento autoritário. O Brasil é um país generoso, cuja população, majoritariamente, ainda acredita, de forma ingênua e pueril, em políticos milagreiros, que fazem o estilo “sincerão” (não foi por acaso que a novela “O Salvador da Pátria” fez tanto sucesso entre nós no final dos anos 80). A grande maioria de nossos compatriotas, insatisfeita com a corrupção, temática exacerbadamente explorada pela mídia, decidiu dar uma guinada radical e eleger um candidato que prometia: “Mais Brasil e Menos Brasília”, além de acabar com a corrupção e “limpar o país”.
Hoje, caminhando para dois anos de sua posse, Bolsonaro pode ser descrito como alguém que mentiu levianamente para o povo brasileiro (não por acaso quase 70% rejeitam-no). Não bastasse o imoral acordo com o famigerado Centrão (bloco de partidos políticos fisiológicos e que possui vários de seus membros acusados de corrupção), não bastassem as gravíssimas investigações acerca de seus filhos (mais notadamente o senador Flávio), não bastassem os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, não bastassem as investidas criminosas contra o meio ambiente, o ex-capitão revela-se “o pior líder planetário no combate à pandemia”. Essa expressão não é minha, está, por isso, aspeada – é do jornal americano Washington Post – e não me venha dizer que esse veículo seja de esquerda. Aliás, “esquerda e direita” tornaram-se o verdadeiro "samba do crioulo doido" no dicionário circense adotado pelo governo e seus asseclas. Ferem a história e matam as ciências humanas ao tratar desse binarismo com tacanhez jamais vista na história política desse país. Isso para não mencionar verbetes como “comunista”, “socialista” e congêneres. A palavra descontextualizada pouco importa para eles, o que vale é a acusação, quanto mais vazia e/ou torpe melhor.
Não é sem motivo que o Brasil é a segunda nação do planeta em número de mortes por coronavírus. Ainda restam dúvidas de que não temos comando ou possuímos um comando mambembe? Alguns dos erros (ou seriam crimes?) cometidos pelo presidente são tão nítidos que ele foi denunciado, recentemente, ao Tribunal Penal Internacional de Haia. Vamos a uma breve retrospectiva macabra:
1. Em 10 de março, quando estava em viagem oficial pelos Estados Unidos, Bolsonaro afirmou que a crise era “fantasia” e que “não é isso tudo que a grande mídia propaga ou propala”. Um dia depois, a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia;
2. Mesmo com orientação expressa do Ministério da Saúde, Bolsonaro participou de manifestação com apoiadores em diversas ocasiões e mostrou-se contrário ao isolamento. 3. Não bastasse isso, o presidente troca de ministros 3 vezes durante a maior pandemia da história brasileira: Mandetta, Teich e Pazuello;
3. Mas o pior de tudo mesmo foi o desrespeito às vítimas – no dia 20 de abril, quando questionado sobre o número de vítimas, o presidente respondeu a jornalistas que não era coveiro. Oito dias após, quando o país registrava 5.050 óbitos, disse: “Sou Messias, mas não faço milagres”. Em 9 de maio, Bolsonaro chegou a marcar um churrasco, que depois disse ser “fake”;
4. Ainda em março, Bolsonaro afirmou que a quantidade de óbitos por Covid-19 em 2020 não alcançaria a quantidade de mortes por H1N1 em 2019 (foram 796). Em maio, o presidente teve uma publicação no Instagram marcada como falsa, ao comparar os números de mortes de doenças respiratórias de 2019 e 2020.
Como diz um amigo de longa data, pastor presbiteriano, inspirando-se na sabedoria bíblica: “as palavras convencem, mas o exemplo arrasta!”. Não tivemos exemplos e comando por parte do executivo federal. Tivemos, ao contrário, anti-exemplos.
O Brasil poderia ter feito um lockdown sério, criado linhas de financiamento subsidiado para médias e pequenas empresas (além de linhas específicas para as grandes corporações), e saído dessa situação há muito tempo, a exemplo do que fez a Nova Zelândia. Não precisaríamos impor tantos sacrifícios à nossa população e às nossas empresas, mas tudo isso ocorre porque não temos comando. O governo queria aprovar um auxílio emergencial vergonhoso de apenas 200 reais! O Congresso emendou, impôs um valor maior e, ainda assim, foram meses até acontecerem os primeiros pagamentos.
Os militares conscientes já abandonaram ou estão a abandonar o governo (outros ainda estão em cargos chave porque ainda acreditam que podem “controlar o presidente” e pensam que deixar o governo neste momento poderia ser ainda pior) e sabem que defender abertamente Bolsonaro custaria muito caro às Forças Armadas. O presidente e seu parvo governo têm desgastado fortemente a imagem das instituições que tenta manter sob seu radar de influência. Sobre isso, sugiro ler a recente pesquisa: “A cara da democracia no Brasil: Edição 2020”. São números impressionantes colhidos pelo INCT (Instituto da Democracia e de Democratização da Comunicação), coordenado pelo brilhante cientista político e professor Leonardo Avritzer da UFMG.
Recordo-me, por fim, da música "3ª do Plural" do Engenheiros do Hawaii, que indaga no refrão: “Quem são eles? Quem eles pensam que são?”. Ouso responder à canção em nosso contexto: eles se acham donos do poder, acham-se melhores por serem rudes, acham-se ungidos e manipulam a fé do povo, acham-se arautos do atraso e ditadores da moral, do civismo e dos bons costumes, esquecendo-se de que não há espaço mais para a autocracia, moralismos baratos e imposições retrógradas. Eles, no fundo, apostam na ignorância do povo brasileiro. Estão errados! O povo brasileiro pode até ser ingênuo, mas não é ignorante e, mais dia, menos dia, vai se levantar contra a tacanhez e a patranha.
*Alisson Diego Batista Moraes, 35, advogado, bacharel em Filosofia pela UFMG, MBA em Gestão de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Foi prefeito de Itaguara entre 2009 e 2016. Atualmente, é membro da Executiva do Partido Verde do Estado de Minas Gerais. www.alissondiego.com.br