domingo, 22 de março de 2020

Em tempos de pandemia é preciso relembrar Boccaccio e Bruegel



Em tempos pandêmicos, há mais um relato literário que nos mostra como, no passado, foi tudo muito pior. Também nos rememora o quão importante é seguirmos as recomendações sanitárias.

O poeta e crítico literário florentino, Giovanni Boccaccio (1313-1375), viveu o auge da peste bubônica (também conhecida por peste negra ou “a peste”) e a relatou do seguinte modo:

“A Peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais, outras menos, chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda parte.”

(...)

E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.

É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse. Digo que era tamanha a eficácia de tal peste em passar de um ser a outro, que ela não o fazia apenas de homem para homem, mas fazia muito mais (coisa que indubitavelmente ocorreu várias vezes), ou seja, o animal não pertencente à espécie do homem que tocasse as coisas do homem que adoecera ou morrera dessa doença não só adoecia também como morria em brevíssimo espaço de tempo. Tive, entre outras, a seguinte experiência, coisa vista com meus próprios olhos, como há pouco disse: um dia tendo os farrapos de um pobre homem morto da doença sido jogados na via pública, dois porcos se aproximaram deles e, conforme é seu costume, primeiro os fuçaram e depois os tomaram entre os dentes para sacudi-los; em pouco tempo, como se tivessem tomado veneno, após algumas contorções ambos caíram mortos sobre os trapos que em má hora haviam puxado.  (BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. São Paulo: Abril Cultural.

A infecção bacteriana era causada pelo bacilo Yersinia pestis, disseminada pelo contato com pulgas infectadas. Calcula-se que cerca de um terço da população europeia tenha sido dizimada, no século XIV, por causa da peste - algo em torno de 100 milhões de mortes.

O último grande surto ocorreu na França, em 1720. Nos tempos atuais, casos de peste são raros. Com a melhora da higiene nas cidades, diminuiu o número de ratos e pulgas que antigamente espalhavam a doença.

PS: Além dos literatos, os pintores também retrataram a temível peste. Uma das mais célebres imagens é o quadro “O Triunfo da morte”, obra do holandês Pieter Bruegel, de 1562 (localizada, atualmente, no Museu do Prado em Madri).