Alisson Diego *
Sou um homem de rotinas. Não me confunda, entretanto, como alguém previsível. A imprevisibilidade faz parte de minha latina personalidade aventureira. Mas da rotina em si mesma eu gosto.
Todos os dias pela manhã, sintonizava o meu dial na Band News FM e começava o dia na companhia de Ricardo Boechat no comando do inconfundível Café com Jornal. Ouvia mais ou menos até o imperdível diálogo com o inoxidável José Simão. E, após me informar, me indignar e rir bastante, ia trabalhar. Foi exatamente assim durante vários anos.
De dois anos para cá, o hábito matutino passou a ser indesviável. Boechat me acompanhou nas estradas todos os dias de semana. Sim, rigorosamente de segunda a sexta-feira! De Belo Horizonte a Itaúna, de Itaguara a Itaúna... Religiosamente, começava o dia ouvindo e, de certa forma, interagindo com o âncora.
Meu quase velho Renegade verde está com pouco mais de 90 mil quilômetros rodados. Sem hiperbolizar, posso dizer que pelo menos uns 45 mil passei ouvindo o Boechat. Por isso, a relação não era apenas entre ouvinte e âncora – tornou-se algo mais substancial. Havia ali uma identificação e uma admiração presentes.
Agora, quando ligo o rádio às 07h30, a voz de Ricardo Boechat, o corajoso jornalista e ávido defensor do interesse público, não está mais lá – para a tristeza geral da nação. Não o ouvirei mais criticar os políticos e os privilégios, rir contagiosamente com o Simão, esbravejar com o Judiciário, indignar com a criminalidade galopante, xingar os bandidos, deblaterar com a impunidade, criticar os falsos profetas e comentar as notícias com argúcia, ancorando a vida diária da gente.
Não haverá, por ora, voz que me represente, que traduza as minhas desesperanças e esperanças todas ao mesmo tempo (só um brasileiro nato pode entender esse espírito de antíteses constantes), que fale com emoção por mim, que canalize todas as minhas líticas indignações de brasileiro médio, cansado dos mesmos problemas que atravancam o país anos a fio.
No dia seguinte ao fenecimento de Boechat, meu rádio não conseguiu sintonizar o Café com Jornal. Mas ouvi um tango meio triste em homenagem ao âncora - o mais brasileiro de todos os “argentinos” e o mais latino de todos os brasileiros:
El Tango de La Muerte
(Carlos Gardel)
No tengo amigos,
no tengo amores,
no tengo patria, ni religión.
solo amarguras tengo en el alma
y juna malaya mi corazón.
Mas no por eso yo me lamento
pues siempre tengo en la ocasión,
para mis quejas una milonga;
para mis penas una canción.
Que me importa de la vida,
si nadie me va a llorar.
Quien me lloraba se ha muerto
y esa muerte me ha matao
Desde entonces desafío
al jilguero y al zorzal,
quien mejor cantando ahoga
las tristezas de su mal.
Milonga mía no me abandones,
Tenerte siempre quiero, a mi lao.
Que no me falte cuando yo muera
una milonga para cantar.
Se ele pudesse ler este artigo um tanto quanto sentimentalista (ainda mais com esses versos de Gardel), já o imagino contrariado a rir e retrucar: “Que coisa mais dramática! Menos, bem menos, minha gente... A morte é tão somente um capítulo da vida. Toca o barco”.
Este neonato 2019 está tragicamente difícil, mas é preciso tocar o barco. Toquemo-lo!
* Alisson Diego Batista Moraes.
PS: Como não poderia deixar de acontecer nestes tempos insanos, haters, radicalistas e desinformados infestaram as redes sociais de infâmias e mentiras após a morte de Boechat. Quem o acompanhava e costuma investigar fatos antes de propalar inverdades, sabe bem que o jornalista sempre se pautou pelo respeito a todas as crenças religiosas. Ricardo Eugênio Boechat exerceu, durante toda a sua carreira, um papel reconhecidamente democrático, com fortes críticas pontuais sim, mas a maioria delas de maneira coerente e justa. Pode ter exagerado vez ou outra, o que não invalida a sua brilhante trajetória jornalística, irrefutavelmente comprometida com o interesse público. Fará muita falta. Muita.