segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Desfazendo mitos: Bolsonaro inventou a direita no Brasil?

Alisson Diego *

Passadas as eleições, a euforia pós-vitória daqueles que votaram 13 e o desconsolo da derrota dos que apertaram 22, é chegada a hora de fazermos uma reflexão, afinal, como nos ensinou o ateniense, Sócrates, há mais de 2 mil anos: “Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. 

A reflexão individual deve ficar por conta de cada um. Aqui, farei uma reflexão coletiva, mirando a nossa sociedade a partir de questionamentos que viralizaram durante o processo eleitoral.

Foto panorâmica do Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo
 brasileiro. / Créditos: Francisco Domingos, 2018 - Pixabei.

Hoje, darei início a uma série de artigos para tratar de alguns “mitos” que se espalharam de maneira dramática nestas eleições. Assustei-me tanto com tudo que vi, ouvi e li neste período eleitoral que decidi escrever sobre questões que podem ser consideradas triviais. Mas em tempos estranhos, dizer o trivial é uma necessidade improrrogável. Vamos lá! Comecemos com esta pergunta: 


  • O Brasil sempre foi de esquerda e Bolsonaro foi o único presidente de direita da história do nosso país?


Essa é uma questão muito fácil de responder, mas que confundiu muita gente durante essas eleições. A resposta é não. Bolsonaro não é o único presidente de direita na história deste país. Ao contrário, a direita dirigiu majoritariamente a política brasileira. 

Façamos uma análise sobre os governos e períodos históricos brasileiros avaliando as orientações ideológicas de cada um. Serei breve, mas abordarei os aspectos que considero mais importantes. 

De 1889 até 1894, o país esteve sob o comando dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, num período conhecido como República da Espada. Estes anos estão inseridos no que se convencionou denominar “Primeira República”, que se estende até 1930. De 1894 a 1930, portanto, a nação foi liderada por conchavos oligárquicos sob a batuta da Política do Café com Leite. Onze presidentes governaram a nação nessas 3 décadas e meia (de Prudente de Morais até Washington Luís). Os três conceitos que retratam esse período são: mandonismo, clientelismo e coronelismo. Domínio claríssimo da direita. 

De 1930 a 1945, período denominado de Era Vargas pelos historiadores, o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas governou a nação. O líder sulista teve 2 momentos distintos na presidência: um ditatorial e outro democrático (1951-1954). Em ambos, ele nunca se considerou “esquerdista”. Pelo contrário, Getúlio colocou na ilegalidade o único partido de esquerda do país naquela ocasião: o PCB. Em que pese isso, atualmente muitos pesquisadores (também intelectuais e políticos do campo progressista) reconhecem o legado nacionalista, trabalhista e modernizador de Vargas como essencial para romper com as oligarquias e com o coronelismo brasileiros, além dos inegáveis avanços sociais. O governo Vargas definitivamente não pode ser caracterizado como de esquerda.

Eurico Gaspar Dutra sucedeu Vargas e deu início ao período histórico intitulado “Quarta República” (1945-1964). Era militar e jamais pode ser considerado de esquerda. Inclusive, determinou a cassação dos mandatos dos parlamentares do PCB. Posteriormente, abandonou o partido pelo qual presidiu a república, o PSD (partido que tampouco pode ser considerado de esquerda), para se filiar à Arena (agremiação de apoio ao regime militar). Vargas voltou ao poder, democraticamente, em 1950 pelo movimento trabalhista que, como dito anteriormente, pode até possuir um olhar generoso  por parte da esquerda contemporânea, mas isso não faz dele necessariamente um “esquerdista”. Mais uma vez, houve, então, um domínio da direita no período mencionado. 

Juscelino Kubitschek também pertencia ao PSD e sucedeu Vargas após seu dramático suicídio. JK, cuja habilidade política é até hoje reverenciada, governou entre 1955 e 1960, conseguiu fazer um mandato unionista, essencialmente democrático, com quadros políticos e técnicos à esquerda e à direita (Celso Furtado e Roberto Campos  trabalharam lado a lado). JK é retratado pelos historiadores como um típico político centrista. E é bom lembrar: em 1964, como senador pelo estado de Goiás, JK votou a favor da deposição do presidente João Goulart (PTB), o que deu início ao governo ilegítimo de Castelo Branco e o decorrente regime militar. Na era JK, houve  um domínio do centrismo, portanto. 

Jânio Quadros, governador de SP, cumprimenta o presidente JK em 1958.
Dois anos depois, o presidente passaria a faixa presidencial ao governador -
Créditos: Domício Pinheiro / Estadão.

https://fotos.estadao.com.br/fotos/acervo,janio-quadros-e-juscelino-kubitschek,608378

Jânio Quadros foi o sucessor de JK. Era de uma aliança que incluía a UDN, partido que representava a mais típica direita brasileira naquele período. Após a sua renúncia tragicômica, assumiu João Goulart, do PTB, que pretendia realizar as reformas de base, dentro do capitalismo brasileiro, sob inspiração do nacional desenvolvimentismo, com o apoio da burguesia nacional. Talvez ele até possa ser considerado “de esquerda” (embora eu pense que se trata de anacronismo), até porque recebeu certo apoio do PCB à época, mas frise-se: Goulart nunca flertou com a “revolução” ou com o  “comunismo”. O escritor Juremar Machado da Silva, autor de dois livros sobre Jango, retratou muito bem aqueles tempos: “Procurei freneticamente algum indício de que havia uma ameaça comunista real rondando o país. Não encontrei. Busquei com a mesma obsessão alguma evidência de que o presidente João Goulart tinha pendores comunistas. Não achei. Jango nunca foi comunista. Não pretendia implantar o comunismo no Brasil. Queria fazer as reformas capazes de alavancar o capitalismo numa economia atrasada.”

Após Jango, veio a ditadura (1964-1985). Os presidentes foram: Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Eram militares muito diferentes de muitos daqueles que, há pouco, apoiaram o bolsonarismo. Sustentaram uma ditadura condenável, inegavelmente, mas não se pode taxá-los de entreguistas ou neoliberais como os chilenos comandados por Augusto Pinochet. Amplo domínio da direita, uma vez mais. 

Em 1985, houve a retomada da democracia (inaugurando o período que vivemos até hoje, denominado Nova República), com a ascensão e morte de Tancredo Neves, e o consequente advento do vice-presidente, José Sarney, assumindo o comando da nação. Nem o mais enviesado analista poderia descrevê-lo como progressista. Há até quem demarque a era Sarney como o despertar do neoliberalismo brasileiro e do desmonte das políticas sociais. Embora a Constituição Federal tenha nascido neste período, o próprio presidente teceu várias críticas ao teor social da nova Carta Magna. 

O governo Collor, por sua vez, dispensa comentários. Foi a direita da direita. Itamar Franco, ao sucedê-lo após os escândalos de corrupção, era, ao estilo JK, um centrista convicto. O ministro da Fazenda de Itamar, após o grande sucesso do Plano Real, tornou-se presidente: FHC era um dos mais respeitados intelectuais de seu tempo. Possuía, de fato, origens acadêmicas progressistas, mas, alçado à presidência, compôs com o PFL, maior expressão da direita brasileira na ocasião (partido do vice-presidente, Marco Maciel) e herdeiro do espólio direitista da UDN e da Arena.  Oito anos (1994-2002) de domínio da centro-direita, uma vez mais. 

Após esse fio histórico presidencial, resta claro que não houve de 1889 até 2002, nenhum presidente efetivamente de esquerda neste país, à exceção de Jango, mas com muitas reservas. Em 2002, aí sim, Lula inaugura um inédito governo de centro-esquerda, frise-se: centro-esquerda. A composição com o senador José Alencar, representante do empresariado mineiro, trouxe a união do capital com o trabalho, garantindo governabilidade e apoio do mercado ao novo governo. Após Lula (2003-2010), o governo Dilma (2011-2015) também é considerado de centro-esquerda, embora tenha emitido sinais econômicos ambíguos (todavia, um governo não deve ser qualificado como de direita ou de esquerda apenas pelo viés das políticas econômicas).

Com Michel Temer e sua concertação de centro-direita que promoveu o golpe parlamentar, o Brasil assistiu ao fim do diminuto período de centro-esquerda que vigeu  no país entre 2003 e 2015. Sob Bolsonaro (2019-2022), o país assistiu a um cenário absolutamente inaudito. Não se tratou da “volta da direita”, mas da reafirmação de uma “nova direita” em sintonia com um movimento internacional, cujos maiores expoentes foram Donald Trump (EUA), Rodrigo Duterte (Filipinas) e Viktor Orbán (Hungria). Uma direita que os estudiosos qualificam como extrema, radical, ultranacionalista, valendo-se de teorias conspiratórias e disseminação de fake news

A conta, portanto, é muito fácil: em 133 anos de república (38 presidentes), foram ao menos 112 anos de governos de direita ou centro-direita (34 presidentes). Isso numa conta generosa porque estou considerando JK e Jango como governos de “centro-esquerda”. A direita, como se nota, dominou o nosso país em 85% da história republicana. Se desconsideramos JK e Jango,  a direita governou este país em 90% do tempo. 90%!!! 

Por tudo isso, fiquei perplexo e escandalizado quando ouvi, durante a eleição, frases do tipo: “a direita agora nasceu no Brasil”. Atribuem esse “nascimento” a Bolsonaro. Uma frase absurda dita por gente ignorante ou ingênua. Invertendo a pergunta que inspirou este artigo, o que se pode dizer é: a esquerda nunca governou este país, até a ascensão de Lula. Ele e Dilma foram os únicos presidentes efetivamente de esquerda da história deste país (e sequer fizerem governos esquerdistas, mas de centro-esquerda com amplas coalizões partidárias, incluindo partidos de centro-direita). 

O que Bolsonaro deu origem é à denominada “ultradireita” ou “extrema-direita”. Mas isso já é tema para o próximo artigo, porque esse já ficou grande demais. 

Por enquanto, é isso. 

Até a próxima edição! 

PS: Leia, estude, dialogue sem intolerância, informe-se. A realidade está muito além do WhatsApp e das redes sociais.


*Alisson Diego Batista Moraes, 37, advogado, filósofo e professor. Mestre em Ciências Sociais. Foi prefeito de Itaguara-MG entre 2009 e 2016. Atualmente, é secretário de Fazenda de Nova Lima-MG

** Artigo publicado na edição de novembro de 2022 do Jornal Cidades.