segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Industrialização tecnológica e sustentável: O caminho para o desenvolvimento nacional

Imagem: Geety Images



* Artigo originalmente publicado no site Sagarana Notícias em 15/01/2024


    O ano de 2023 assinalou um recorde notável na balança comercial do Brasil, com as exportações atingindo a cifra impressionante de US$ 323,7 bilhões. Este êxito é majoritariamente atribuído à consolidada parceria comercial com a China, que agora absorve aproximadamente 30% dos produtos brasileiros destinados ao mercado internacional, representando um aumento significativo em relação à última década, quando sua participação não ultrapassava os 20%. Esta mudança reflete uma alteração nas dinâmicas globais de comércio.

    É imperativo, entretanto, analisar este cenário com um viés crítico (no bom sentido da crítica), pois, apesar do sucesso evidente, há sérios indícios de vulnerabilidades na estrutura econômica do Brasil. O crescimento desproporcional das exportações para a China, enquanto as vendas para outros países, como os Estados Unidos, diminuíram, levanta preocupações entre os economistas. Eles apontam para os riscos associados à dependência excessiva de um único mercado. Mas esse não é o maior problema, haja vista a relação consistente entre os dois países nos últimos anos e a perspectiva de parcerias estratégicas.

    A grande questão é o cardápio exportador brasileiro, amplamente dominado pelas commodities. Setores como soja, minério de ferro e petróleo correspondem a impressionantes 37% das exportações de nosso país. Em comparação com 2006, quando esses produtos representavam menos de 10%, nota-se uma falta de diversificação na pauta exportadora, aumentando a vulnerabilidade do país a flutuações nos preços dessas commodities no mercado internacional - o que acontece com certa frequência.

    O setor agropecuário, especialmente nos segmentos de soja e proteínas de carne bovina, suína e de frango, também registrou marcas históricas em 2023, desempenhando um papel significativo na balança comercial. No entanto, ressurge a necessidade de questionar a ênfase excessiva nessas áreas e sua relação com a sustentabilidade ambiental. A dependência de práticas que podem resultar em impactos negativos a longo prazo, como desmatamento e intensificação no uso de agrotóxicos, exige uma abordagem ponderada. O fortalecimento do agronegócio, apesar de sua inquestionável potencialidade para a economia brasileira, deve ser acompanhado por uma estratégia de industrialização nacional.

    Neste contexto, emerge a necessidade premente de repensar a estratégia econômica do Brasil. O grande desafio é a industrializar o país de maneira inteligente e sustentável. A indústria, historicamente capaz de proporcionar melhores salários e agregar valor aos produtos, é vista como a chave para posicionar o Brasil estrategicamente entre as nações. O vice-presidente e atual ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, sabe muito bem disso e chegou a afirmar em sua posse no MDIC que os maiores desafios no cargo serão "fazer o setor expandir a sua participação no Produto Interno Bruno, ter iniciativas que visem preservar o meio ambiente e se aliar à justiça social". [1] Isso é um alento porque demonstra que o governo está atento à questão desde janeiro de 2023.

    Neste contexto, o governo brasileiro, por meio do MDIC, está forjando a nova industrialização em seis grandes pilares: 1. cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética; 2. complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS [Sistema Único de Saúde] e ampliar o acesso à saúde; 3. infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades; 4. transformação digital da indústria para ampliar a produtividade; 5. bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as futuras gerações; e 6. tecnologias de interesse para a soberania e a defesa nacionais. O plano é alvissareiro e, espero, seja implementado eficazmente. O grande desafio, aliás, é sua implementação efetiva, uma vez que não demanda apenas esforços governamentais, mas também a participação ativa da sociedade civil e a construção de consensos políticos de longo prazo - um grandioso desafio para o Brasil na atual conjuntura sociopolítica.

    É imperativo que o país formule e implemente um projeto ousado de desenvolvimento, alinhado com princípios de responsabilidade socioambiental. Este projeto deve abranger políticas que fomentem a inovação, a capacitação da mão de obra, a diversificação produtiva e a redução das desigualdades sociais.

    Apesar de os números recordes na balança comercial serem dignos de celebração, é crucial interpretá-los com um olhar crítico e de pensamento de longo prazo. A pergunta-chave que se impõe é: "Qual papel o nosso país quer e pode ocupar no mundo contemporâneo?" A hora é propícia para uma visão ousada e abrangente, capaz de posicionar o Brasil como protagonista na geopolítica contemporânea.

    O aumento do Valor Adicionado Industrial per capita emerge como um fator intrinsecamente vinculado a diversos benefícios socioeconômicos, desempenhando papel crucial no aprimoramento do Índice de Desenvolvimento Humano. A ascensão desse indicador está associada não apenas à redução da pobreza e do trabalho infantil, mas também à criação de empregos qualificados e melhor remunerados, conforme destacado pelo professor Paulo Gala (FGV e Banco Master).

    À medida que as economias se industrializam, a demanda por mão de obra qualificada se intensifica, incentivando a população a buscar educação e formação necessárias para acessar empregos bem remunerados. O aumento das receitas, o pagamento de mais impostos e o investimento crescente em educação tornam-se resultados tangíveis desse processo. Além disso, estudos demonstram que a industrialização também está intrinsecamente ligada à promoção da saúde. Inovações de alto nível e pesquisas científicas, incluindo desenvolvimentos em tratamentos médicos, vacinas e tecnologias médicas, são fomentadas em ambientes industrializados. Essa transformação econômica pode contribuir para a mitigação de efeitos ambientais adversos, como poluição, mudança climática, destruição de habitats e superexploração de recursos naturais.

    Industrializar o país nas bases da sustentabilidade, da tecnologia e da soberania é uma importantíssima estratégia para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável e o posicionamento altivo do Brasil no concerto das nações.


Referências

[1] Alckmin toma posse como ministro e quer protagonismo da indústria no PIB. Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/alckmin-toma-posse-como-ministro-e-quer-protagonismo-da-industria-no-pib/.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

O desafio da reconstrução: um ano dos ataques à democracia brasileira

 * Artigo originalmente publicado no site Sagarana Notícias em 08/01/2024


Site do jornal americano NYT em 08/01/2023
denomina os golpistas como apoiadores do ex-presidente Bolsonaro

    Há precisamente um ano, o Brasil assistiu, atônito, aos ataques perpetrados contra as sedes dos três poderes em Brasília - fato que representou o ápice da polarização política que permeava o país há algum tempo e que se intensificara após a vitória de Lula sobre Bolsonaro nas eleições de outubro. A tentativa golpista foi uma emulação dos bolsonaristas aos radicais trumpistas, que haviam chocado o mundo ao protagonizarem uma invasão inédita ao Capitólio, em Washington, dois anos antes. Inconformados com as derrotas eleitorais, os extremistas optaram pela barbárie golpista. 

Naquela tarde do segundo domingo do ano, milhares de "manifestantes", vestindo verde e amarelo, alguns acampados em frente ao quartel-general do Exército na capital federal, dirigiram-se à Esplanada dos Ministérios, invadindo a praça dos Três Poderes, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF (Supremo Tribunal Federal), perpetrando atos de vandalismo nos interiores desses edifícios. Mas não eram apenas "vândalos", tampouco "manifestantes". Atabalhoadamente ou não, eram golpistas (denominação utilizada pela própria PGR no envio das denúncias ao STF) envenenados pelo extremismo de direita, almejavam derrubar o governo brasileiro  democraticamente eleito e que tomara posse há apenas uma semana. 

    Os desdobramentos desse episódio ressoaram ao longo do ano, resultando em uma intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal e na suspensão do mandato do governador Ibaneis Rocha (MDB). A Polícia Federal revelou a existência de uma minuta golpista na residência de Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro, que foi preso uma semana após os ataques. 

    A reação aos eventos golpistas desencadeou a instauração de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs): uma no Congresso Nacional e outra na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Em janeiro, deputados distritais inauguraram a CPI, ouvindo 31 pessoas, incluindo autoridades da Segurança Pública, Exército e Gabinete de Segurança Institucional (GSI). No mês de maio, o Congresso Nacional instalou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que, após intensas investigações, apresentou um relatório conclusivo em outubro, sugerindo o indiciamento de 61 pessoas. Dentre os indiciados, destacam-se o ex-presidente Jair Bolsonaro e oito generais, incluindo quatro ex-ministros de seu governo. 

    O mês de setembro de 2023 marcou o início do julgamento das primeiras ações penais vinculadas à crise. Quatro réus foram condenados a penas que variam de 14 a 17 anos de prisão, por crimes como associação criminosa e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.  Após um ano dos eventos, 2.170 pessoas foram presas, com a PGR denunciando 1.413 indivíduos por atos antidemocráticos. Até fevereiro de 2024, 30 pessoas foram condenadas, e outras 29 aguardam julgamento. As investigações prosseguem, sendo o maior desafio agora a identificação e a consequente punição dos autores intelectuais por trás dos atos que abalaram a frágil democracia brasileira. 

    Um ano depois, pode-se dizer que o Brasil se encontra em um complexo processo de reconstrução pós-crise democrática. A atuação efetiva dos três poderes, da sociedade e da imprensa durante o ano de 2023 foi crucial para fortalecer a frágil democracia nacional, mas a verdade é que a sociedade brasileira segue traumaticamente polarizada, conforme apontam diversas pesquisas de opinião. Parte considerável da população brasileira ainda flerta com a extrema direita e 11% dos eleitores de Jair Bolsonaro aprovam a intentona golpista, demonstra pesquisa da Quaest divulgada nesta semana. A participação de Bolsonaro na coordenação dos eventos golpistas gera divergências entre os entrevistados: 47% acreditam que ele exerceu alguma influência, enquanto 43% têm a opinião oposta. Em fevereiro do ano anterior, esses números eram, respectivamente, 51% (a maioria) e 38%. 

    Passados doze meses, no entanto, as respostas judiciais ainda não abarcaram completamente as ramificações da crise. Juristas renomados como o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski destacam que a responsabilização incompleta pode acarretar consequências graves. Apesar dos esforços do Supremo Tribunal Federal (STF) em acelerar a responsabilização dos executores diretos dos ataques, permanece uma interrogação crucial sobre a justiça aos membros das Forças Armadas que estavam envolvidos, seja por ação ou omissão, assim como os autores intelectuais dos ataques - financiadores e instigadores. 

    O cenário é complexo e o 8 de janeiro de 2023 seguirá a nos desafiar enquanto sociedade cingida em busca de estabilidade democrática. A preocupação com a persistência do espectro do autoritarismo ressalta a importância de uma vigilância constante para salvaguardar a democracia, para tanto é fundamental o fortalecimento das instituições democráticas e a regulamentação das redes sociais, estabelecendo um arcabouço legal que promova a cidadania digital e imponha responsabilidades às plataformas. 

    Ainda hoje observa-se a livre propagação de manifestações golpistas nas redes sociais, sem qualquer filtro, resultando em um cenário de verdadeira “lei da selva” no ambiente virtual, como destacou o Advogado Geral da União Jorge Messias. Não há dúvidas de que o movimento de 8 de janeiro de 2023 foi organizado e amplificado por meio dessas redes, propagando inverdades e mobilizando um grande número de pessoas em Brasília e nos quartéis país afora. Sem filtros eficazes para coibir situações dessa natureza, a frágil democracia continuará ainda mais fragilizada. 

    Em última análise, a mensagem que ressoa é inquestionável: a sociedade brasileira deve internalizar profundamente a ameaça do autoritarismo e cultivar uma vigilância constante para salvaguardar a estabilidade democrática. Este desafio é premente, e a neutralização do extremismo de direita requer um compromisso coletivo, transcendentemente abrangente entre democratas de todas as vertentes ideológicas, desde liberais e socialistas até socialdemocratas e trabalhistas. A verdadeira construção de um país mais justo, equitativo e genuinamente democrático demanda, agora mais do que nunca, a coesão e a solidariedade inabaláveis de todos os defensores da democracia no Brasil. 

    Somente por meio de uma consistente e ampla frente democrática, podemos aspirar a superar as ameaças persistentes, transformando o golpismo em uma mera e fatídica nota na história, um lembrete perpétuo da importância vital de preservar nossa democracia e garantir que o fantasma do autoritarismo jamais nos assombre novamente.