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Quando criança, cansei de escutar dos adultos que Deus era brasileiro (hoje, ainda falam isso, mas acho que o auge dessas afirmações foram os anos 70, 80 e 90 – faltam-me evidências para aprofundar nesta questão que, certamente, tem potencial para engendrar um ótimo ensaio sociológico). Nunca consegui compreender, contudo, o porquê de os adultos daquela época dizerem isso com tamanho entusiasmo ufanista. Eles explicavam, de um jeito meio estranho e impreciso, que nestas terras não havia terremoto, furacões e outras catástrofes naturais, também não havia guerras e aparentes conflitos étnicos – então, concluíam eles, Deus só poderia ter nascido aqui ou, na pior das hipóteses, ter escolhido estas terras como as Suas preferidas dentre Seus infinitos domínios universais.
Fui crescendo e aperfeiçoando o meu espírito mineiro desconfiado, passando a questionar fortemente esses dogmas, meio ufanistas e meio jocosos, dos adultos a respeito da Terra Brasilis. Eu devia ter uns onze anos de idade quando surgiu uma canção do autêntico axé baiano que me ajudou a questionar a brasilidade divina. A música fez muito sucesso em meados dos anos 90 e se chamava “Deus É Brasileiro” do grupo Terra Samba. O compositor da referida canção provocava ritmadamente:
“Ônibus lotado, povo apertado / Será que na vida tudo é passageiro / Um calor danado, povo sem dinheiro / Tenho lá minhas dúvidas se Deus é brasileiro / Deus não pega ônibus, nem lotação / Mas deve ouvir pedidos e reclamação / Não tem cor nem sexo nem estado civil / Coitado se ele for o gerente do Brasil”.
Quem disse que um bom axé da Bahia não nos pode impelir a reflexões menos rasas? Como se não bastasse o Criador não ser brasileiro, o compositor ainda lamentava: “Coitado, se Deus for o gerente do Brasil”.
Podíamos não ter, historicamente, trágicas guerras e catástrofes naturais em solo brasileiro, mas sempre tivemos violência, fome, desigualdades aberrantes, serviços públicos ineficientes, políticos medíocres e criminalidade em proporções descomunais Continuamos tendo esses mesmos problemas socioestruturais, agora com dois pesados agravantes: 1) a pandemia (líderes mundiais lançaram, nos últimos dias, um comunicado afirmando que a pandemia de Covid-19 é o maior problema da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial); 2) o governo de Jair Bolsonaro, considerado o pior do mundo na gestão da pandemia (não entrando em outras idiossincrasias).
A pandemia, há mais de um ano, nos devasta econômica, social e politicamente, além de escancarar muitas de “nossas” mazelas históricas como a desorganização governamental e a crônica dificuldade em cumprir regras sociais. Os problemas são “nossos” sim (faço questão de salientar isso), porque o governo nada mais é do que o reflexo de seu povo – gostemos ou não dessa frase, ela reflete a dura realidade.
Apenas dois países, Brasil e Estados Unidos, dentre as cerca de 200 nações do planeta, ultrapassaram a marca de mais de 3 mil mortes por dia em decorrência do Coronavírus. Somam-se quase 340 mil mortes por Covid no Brasil, quase 30 mil mortes em Minas Gerais e mais de 20 mortes em solo itaguarense, pessoas que conhecíamos e com as quais convivíamos. De acordo com o respeitado cientista Miguel Nicolelis, podemos chegar a 500 mil brasileiros mortos pelo vírus até meados do ano se não houver uma gestão federal mais efetiva. Definitivamente, não há como não reconhecer a gravidade, atestada pelos números assombrosos da Covid-19 em solo pátrio. Os EUA corrigiram a rota ao elegerem Joe Biden, que investiu maciçamente em vacinas e num ousado projeto de recuperação econômica. Por aqui, seguimos a ver navios...
O jornalista e ex-deputado Fernando Gabeira (PV) sintetizou muito argutamente a situação atual do país, em um artigo publicado pelo jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 02/04: “Um presidente incapaz, entregue no campo político à voracidade dos seus aliados do Centrão, buscando de todas as maneiras sabotar a luta contra a pandemia – tudo isso compõe um cenário desolador, sobretudo porque a sociedade está reduzida, no momento, a protestos virtuais.” Gabeira termina o seu artigo sentenciando: “Cedo ou tarde, julgaremos Bolsonaro.” Espero que Gabeira esteja certo e que o presidente seja julgado, tanto pelas instâncias judiciais quanto políticas, uma vez que, pela História, o julgamento embora tarde, nunca falha. Não custa lembrar que, na Eslováquia, o primeiro-ministro Igor Matovic e seu governo populista caíram em decorrência da gestão desastrosa da pandemia. Matovic foi o primeiro líder mundial derrubado pela gestão incompetente diante do vírus.
Luiz Gama, Darcy Ribeiro, Maria Quitéria, Juscelino Kubitschek, Tarsila do Amaral, Rui Barbosa, Dom Pedro II e outros tantos brasileiros engajados lutaram intensamente para que se cumprisse a profecia do “país preferido por Deus”, dedicando suas vidas pela soberania e pela grandeza dessa nação. Hoje, eles sentiriam vergonha pelo que se passa nesta terra.
Cristão mediano otimista que quase sou, não quero terminar este artigo com tons desesperançados. Ainda acredito que Deus possa ter um olhar generoso e misericordioso para com o Brasil, afinal de contas, continuamos a ser a nação com a maior biodiversidade do planeta e isso só pode ser graça divina. Por outro lado, creio que alguns dos problemas terrenos, sobretudo os sociais, precisam mesmo ser resolvidos diretamente pelos seres humanos. Penso, inclusive, que Deus espera isso de nós, afinal, dotou-nos da graça do livre arbítrio, temática belíssima e vastamente explorada pela filosofia de Santo Agostinho.
Quiçá, o primeiro dos problemas que devamos resolver por aqui seja aprendermos a escolher melhor os nossos governos. Espero que aprendamos. Outubro de 2022 é logo ali. A depender dos resultados eleitorais, pode ser que o Criador desista de vez de Sua nacionalidade brasileira e destine Seus olhares gentílicos para a Austrália, por exemplo, um país livre da pandemia há dois meses, onde há um governante competente e um povo que cumpre regras.
* Alisson Diego Batista Moraes, 36, advogado, MBA em Gestão Empresarial pela FGV, bacharel em Filosofia pela UFMG e mestrando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Foi prefeito de Itaguara entre 2009 e 2016. Atualmente, é membro da diretoria executiva do Partido Verde de Minas Gerais e assessor de projetos estratégicos da Prefeitura de Itabira-MG.
** Artigo publicado no Jornal Cidades, edição de abril de 2021 - Itaguara/MG.