sexta-feira, 19 de abril de 2019

A sentimentalidade poética disruptiva de João da Cruz

Por mais que minha fé, por vezes, seja fragilmente cambaleante e o agnosticismo insista em guiar-me a razão, fato é que possuo um respeito absolutamente “oblato” à Semana Santa e ao que se reverencia nesta data: a caminhada rumo à morte de cruz e gloriosa ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ungido salvador de toda a humanidade. 

Neste sentido, quero compartilhar um hábito que tenho mantido ao longo dos últimos 18 anos (desde que participei de uma encenação teatral na Semana Santa): na sexta-feira da paixão, dedico-me à leitura de poemas “religiosos” e “transcendentais”. 

Independentemente da crença em si, ou mesmo da estética poética, debruço-me sobre esse gênero poético para sentir, pois são, via de regra, composições bastante carregadas de uma singular sentimentalidade. O que chamo atenção aqui é o rito, os versos desejantes e a manifestação humana do sagrado. 

Um dos constantes poetas desse dia marcante tem sido o célebre espanhol São João da Cruz (nascido João de Yepes em 1542 e morto em 1591), considerado “doutor místico” pela Igreja Católica (assim proclamado pelo Papa Pio XII em 1926). 

Sua vida foi marcada, por um lado, pela dor infligida-lhe pela dura realidade externa, e por outro pela alegria da descoberta crescente de uma vasta e luminosa realidade interior. 

Para São João da Cruz, não se pode “explicar com palavras o que com palavras não se pode exprimir”. Ele sente de uma maneira comovente e se vale dessa sentimentalidade disruptiva para compor versos arrebatadores. 

Não é fácil compreender os versos místicos dele sem acompanhamento de comentadores, mas ouso compartilhar aqui uma composição (para se ter a ideia da força transcendental-semântica): “Chama de Amor Viva” - “Canções da alma na íntima comunicação de união de amor com Deus” (Granada 1582- 1584): 

1. Oh! chama de amor viva 
Que ternamente feres 
De minha alma no mais profundo centro!  
Pois não és mais esquiva, 
Acaba já, se queres, 
Ah! Rompe a tela deste doce encontro. 

2. Oh! cautério suave! 
Oh! regalada chaga! 
Oh! branda mão! Oh! toque delicado 
Que a vida eterna sabe, 
E paga toda dívida! 
Matando, a morte em vida me hás trocado. 

3. Oh! lâmpadas de fogo 
Em cujos resplendores 
As profundas cavernas do sentido, - 
Que estava escuro e cego – 
Com estranhos primores 
Calor e luz dão junto a seu Querido! 

4. Oh! quão manso e amoroso  
Despertas em meu seio 
Onde tu só secretamente moras:  
Nesse aspirar gostoso, 
De bens e glória cheio, 
Quão delicadamente me enamoras! 

Chama de Amor Viva – Fonte: SCIADINI, Patrício.(Org.). Obras completas. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2002, p. 37 e 38. A fotografia: Escultura de São João da Cruz, na Igreja das Carmelitas Descalças, em Sevilla, na Andaluzia. Obra de Pedro Roldán.