quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Sobre os Gurus

Compartilho, a seguir, texto do eminente professor Roberto Romano. Recomendo muito a leitura (sobretudo a todos nós que, de alguma maneira, vivemos os ares acadêmicos):

Sobre os Gurus

Nossa época é o tempo dos gurus. Existem mestres para tudo: cozinha, economia, ciência política, filosofia, teologia, crime organizado, orgias, etc. É a era dos personal training em tudo e para todos. “Conselhos” são aceitos e procurados com avidez, consumidos também de modo célere, jogados no lixo quase instantaneamente. E segue a busca de novos gurus, novos assuntos, nova moda. Claro, a literatura vai na onda. Por mais que Umberto Eco advirta, o mundo da tecnologia imbeciliza com método.

Outro dia, procurando uma tese política de Leibniz (sim, o grande matemático e físico escreveu sobre teologia, direito, diplomacia, economia, etc...) parei numa página profética. A traduzo aqui de modo imperfeito, para dar ideia do que ele advertia e se cumpre hoje.

“A peculiaridade de um intelectual também possui o péssimo efeito de prover ocasião para seitas e para o desejo da falsa glória que atrasa o progresso. Um intelectual tem opiniões que ele imagina sutis e relevantes. Logo ele quer se tornar a cabeça de uma seita. Ele trabalha portanto para arruinar a reputação dos outros. Ele fará um livro de mágico erudito, ao qual seus discípulos se acostumam, pois sentem-se incapacitados de usar a própria razão sem tal livro. Para ele é fácil os cegar para conseguir a glória de ser o seu único líder. O público, no entanto, perderá tudo o que as boas mentes poderiam fazer, mas não fazem por estarem numa seita, se elas perdem a liberdade e a diligência que agora lhes falta, pois acreditam suficiente o aprendido com o mestre. Bom entendimento e comunicação destroem tal comportamento. Então alguém reconhece facilmente que não deveria limitar a si mesmo às doutrinas do seu mestre, e que um só homem conta pouco diante da união de muitos. Então alguém dará a cada um a justiça que merece, na proporção em que contribui para o bem comum”. Uso a tradução inglesa : “Memoir for Enlightened Persons of Good Intention (1690). Leibniz, Political Writings, Ed. Patrick Riley, Cambridge University Press, 1988, pp. 109-110.

Quantos na universidade de hoje (e de ontem) pertencem a seitas... Caíram as grandes ortodoxias (liberais, estalinistas, positivistas, freudianas, etc). Em seu lugar surgiram as pequenas : seguidores de Foucault que não leem outros escritores, de Agamben, de Heidegger, de....a lista é interminável. Vai dos mais elevados (Leibniz na sua crítica visava Descartes) aos mais baixos, dos mais progressistas aos que indicam ministros de educação em governos retrógrados, etc. Mas permanece a ortodoxia. Estive em bancas onde temas relevantes para a humanidade eram reduzidos à visão de um só teórico. Quando o candidato era confrontado por outros filósofos, na lembrança dos examinadores, respondia sempre que para o “seu” escritor, o problema estava resolvido ou era irrelevante. Teses inteiras na ótica de um só guru.

É bom estudar determinado autor, mas seus enunciados devem ser postos sinoticamente, quando o assunto é igual, diante de outros. Existem “especialistas” em Foucault, Agamben, etc. Que tais autores sejam conhecidos, lidos, comentados. Mas se “tudo” está neles, entramos no que Leibniz diz dos sectários : não conseguem pensar sem os livros do mestre.

Já contei a anedota verídica ocorrida comigo tempos atrás. Estava eu em férias na bela Ouro Preto, na época em que e mail só por computador. O hotel em que me hospedava tinha uma internet ruim e lenta. Na cidade uma Lan House oferecia serviços rápidos. Entrei certa feita na Lan House e o computador estava sendo usado por uma jovem. Ela imprimia páginas de um texto. Ao lado do computador notei traduções (incertas quanto à qualidade) de Nietzsche. Perguntei: “a senhora estuda Nietzsche?”. Enfarada a moça responde a meios dentes, “sim”. Pergunto: “sob qual ponto de vista o estuda? Me interesso muito por ele”. Resposta : “Nietzsche não é para qualquer um”. Calei-me e esperei que o computador fosse liberado. Ah, ela preparava uma comunicação para a Anpof, que se reunia na cidade.

Volto ao hotel e no lobby encontro uma roda de professores e estudantes. No meio, um grande conhecedor do pensamento de Nietzsche. Ele sai da roda e me abraça, apresentando-me ao grupo: “este é o professor Romano, grande conhecedor de Nietzsche”. A informação era mais generosa do que verdadeira, pois meus conhecimentos sobre o grande escritor são razoáveis, mas não importantes. Valeu a bondade habitual do colega. A senhorita do caso estava na roda. Só faltou para ela um ataque cardíaco... Pois bem: foi preciso a voz do mestre (inclusive pouco veraz pela sua generosidade para comigo) para que ela percebesse que, para além da sua seita, alguém poderia ter luzes para entender o seu estudo.

Leibniz tem razão: como sair do circuito fechado das seitas? “Bom entendimento e comunicação”. Basta deixar o idioleto dos “autores consagrados” e dos “interpretes consagrados”, aceitar que em outros setores as pessoas pensam e conhecem e a verdade não reside nos lábios dos gurus. Se Leibniz fosse ouvido, talvez certos gurus não tivessem poderes tão amplos em nossos dias, tristes dias.

Roberto Romano

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