sábado, 25 de dezembro de 2021

Afinal, o que é o natal?

Entre o congraçamento social e a atomização

* Alisson Diego


A resposta pode parecer simples: natal é uma manifestação de fé, a celebração do nascimento de Jesus, o filho de Deus, que é o próprio Deus-encarnado, assim dizem os cristãos.  

Minha questão, no entanto, é de fundo um pouco menos teológica. Quero dizer: como percebemos o natal socialmente no Brasil?  

O natal não é apenas uma noite de encontros familiares e troca de presentes. É, historicamente, um dos mais importantes momentos de congraçamento coletivo e um significativo elemento construtor de sociabilidade.  

O cancioneiro popular brasileiro é uma clivagem interessante para refletir sobre o natal. Adoniran Barbosa, Assis Valente, Chico Buarque, Luiz Gonzaga e até Carmen Miranda cantaram o natal em tons brasileiros há muitas décadas, dentre outras tradições culturais e musicais umbilicalmente ligadas ao natal como a Folia de Reis.   

Nas últimas décadas, a música e a cultura popular têm perdido espaço na temática natalina - juntamente com uma gama de autênticas manifestações nacionais, substituídas por desarmônicos estrangeirismos - frutos do neocolonialismo cultural que nos estão a impingir.


Te tamari no atua (“O filho de Deus”), por Paul Gauguin - 1896.


De volta à reflexão natalina, o que estamos assistindo, ano após ano, é a completa decadência do natal como este importante elemento de sociabilidade e pertencimento comunitário. Diante de uma sociedade cada vez mais atomizada e distante de sua própria história, estamos perdendo a capacidade de envolvimento com os ritos coletivos. Ao perdermos a dimensão social do natal, é possível perceber duas dinâmicas:   

1. Atomização social -  A individualização se acentua, deflagrando um processo de perda de laços coletivos e até mesmo familiares.  

2. Reflexão prejudicada - ao abandonar o natal como rito social, perdemos a oportunidade de refletir sobre questões que incomodam todas as sociedades ditas cristãs.   

O natal é um dos momentos mais propícios para nos debruçarmos sobre os dilemas nacionais, sobretudo a desigualdade tão incômoda quanto normalizada ao longo do ano.   

Neste período, muitos se perguntam e até se indignam sobre as razões das desigualdades sistêmicas neste país. Ao se perder a dimensão do rito natalino, normalizamos a desigualdade e ressaltamos a oportunista narrativa meritocrática.  Não se pode esquecer dos versos de Adoniran Barbosa muitas décadas atrás (eles continuam dramaticamente atuais):  

“Eu me lembro muito bem / Foi numa véspera de Natal / Cheguei em casa / Encontrei minha nega zangada / A criançada chorando / Mesa vazia, não tinha nada”.

Muitas mesas ainda continuam vazias no Brasil assolado pela pandemia em 2021, muitas crianças choram por falta de vida digna neste tempo nosso.   

Quando o natal perde sentido, nosso olhar que precisa ser crítico, mas também de esperança, torna-se unicamente utilitário e relega a solidariedade a último plano.  O natal é também o rito de esperança para milhões de famílias em busca de vida digna. Assim, cantou Chico Buarque em versos natalinos: 

“Pra quem não tem seu tesouro / A vida é só uma esperança”. 

Não se trata da esperança passiva, da espera cômoda, mas da esperança ativa, que provoca reflexão crítica e nos convida a transformar o mundo.  

Para além dos trenós, da neve e das renas - objetos distantes e gélidos, o Brasil é calorosamente rico em manifestações culturais, inclusive as natalinas. É essa cultura popular que pode ressignificar a vida comunitária e trazer alegria, congraçamento e reflexão crítica para a sociedade - preceitos importantes para encontrarmos saídas para os nossos persistentes dilemas nacionais. 

Afinal de contas, para solucionarmos os problemas do país, primeiro precisamos todos nos reconhecer como membros de uma sociedade nacional. 

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