terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A casca dourada e inútil das horas

Alisson Diego *

Foto de Mario Quintana em 1986
Créditos: Dulce Helfer / Agencia RBS


Muitas temáticas caberiam neste texto. Poderia abordar a COP 26, a propalada Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, avaliar os números recordes sobre o desmatamento na Amazônia, analisar as mudanças na Academia Brasileira de Letras (ABL) com os ingressos de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro, escrever a respeito da possível candidatura do ex-ministro Sérgio Moro à presidência da República ou ainda refletir sobre o “fim da pandemia de Covid-19” ou o recrudescimento da mesma, haja vista a nova variante ômicron. Todavia, o Flávio Lara me comunicou que esta edição do Jornal Cidades é a derradeira de 2021. Por essa razão, esta coluna trará tons mais poéticos e, por ora, me distancio um pouco de quaisquer reflexões mais sisudas.

Chegar ao fim do ano significa, necessariamente, refletir sobre os meses que passaram desde janeiro. Impossível não o fazer ou não se influenciar com o clima natalino e de encerramento de ciclo. Desde que o ser humano recortou o tempo, necessitamos avaliar o passado, sobretudo o passado recente, para assim planejarmos, ainda que minimamente, os próximos passos de nossas vidas e nos blindarmos um pouco do imponderável. Não conheço uma pessoa sequer que não passe, em alguma medida, por essa fase de autorreflexão nesta época do ano.

Se por um lado, pensar demais e planejar em excesso pode ser causa de inevitáveis frustrações e balanços decepcionantes ao se constatar metas traçadas e não cumpridas, por outro a ausência de se planejar o futuro pode significar a tão criticada “vida irrefletida” tal qual mencionada por Sócrates, o filósofo grego do qual todos somos um pouco herdeiros. Particularmente, fico no meio do caminho, entre o planejar e o deixar levar. Planejo o “planejável” e deixo levar o que não tenho domínio, bem na linha dos filósofos estoicos (ao leitor que não conhecer o estoicismo, sugiro uma pesquisa e a leitura de Meditações de Marco Aurélio). Aos 36 anos de idade, aprendi que o tempo corrige muitas coisas que nós não dominamos. Aprendi também que, para outras coisas, somente o rigor de uma boa e sistemática organização é capaz de garantir um bom resultado.

Sobre a temática do tempo, muito nos ensina Mario Quintana, o icônico jornalista e poeta  gaúcho falecido em 1994 aos 87  anos. Ele é o poeta predileto da escritora itaguarense Neusa Sorrenti. Mario é autor de um poema conhecido pelo título "O Tempo”, mas que tem como título original "Seiscentos e Sessenta e Seis”, publicado na obra Esconderijos do Tempo, em 1980, que lhe rendeu o renomado Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (ABL). Para se ter ideia da popularidade deste poema, há milhares de citações sobre ele na internet, além de diversas adaptações e releituras. Uma dessas adaptações adorna uma parede no mítico Bar do Zão em Itaguara.

E o que diz o tal poema famoso? Leia você mesmo(a), estimado(a) leitor(a):


“A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. / Quando se vê, já são 6 horas: há tempo / Quando se vê, já é 6ª-feira… / Quando se vê, passaram 60 anos! / Agora, é tarde demais para ser reprovado…/ E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade, / eu nem olhava o relógios / seguia sempre em frente…/ E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.”


A grande mensagem contida nos nove versos de Quintana é a premência da vida. Isto é, “viver ultrapassa qualquer entendimento”, como diria Clarice Lispector: O dilema existencial do poeta gaúcho pode ser sentido ao ler esses versos. Dilema de um homem que estava com 74 anos de idade quando escreveu o poema. Ao forjar estes versos e constatar a passagem implacável do tempo e seus efeitos sobre qualquer   um, ele também parece dialogar conosco e nos aconselhar: “siga sempre em frente... E vá jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.”

O tempo é um dúbio ator: é ele que nos impõe a morte como destino comum, mas também é ele que nos torna humanos, nos oportuniza vencer a mediocridade, reinventar a vida e atribuir significado àquilo que valoramos. É a finitude que torna raros os momentos, belas as horas, emocionantes os encontros, os pores-do-sol, as viagens, os abraços, as memórias... 

É tempo de repensar a vida, de frear o consumismo, de controlar o ego, de se permitir mais, de se cobrar menos, de perdoar mais e julgar menos, de pensar e agir coletivamente, de ressignificar a existência.

Adeus, 2021. Que venha um 2022 sem pandemia, com muita solidariedade, compreensão, tolerância e amor. É esta, aliás, a grande mensagem do maior aniversariante de dezembro: “Este é o meu mandamento:  amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15, 9-17).

Apenas a prática do amor será capaz de salvar a humanidade e a nossa Casa Comum.


* Alisson Diego Batista Moraes - artigo escrito para a edição de dezembro de 2021 do Jornal Cidades (Itaguara/MG).

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