domingo, 2 de abril de 2023

A mineiridade de Clara Nunes: a potente voz do Brasil *

“Minas é o mundo” é uma das frases de que mais gosto quando me refiro ao meu estado. Isso porque ela carrega dentro de si toda a grandeza deste estado plural, diverso e, ao mesmo tempo, tão singular. Há um pouco de cada estado do Brasil em Minas Gerais. Sagaz que era, Fernando Brant disse, certa vez, que “Minas é a síntese do Brasil”. Se Minas é o mundo e sintetiza o Brasil, o nosso país é um verdadeiro universo - de cultura, música, história, cosmovisões. 

Digo isso porque poderia soar estranho para muitos que uma das maiores intérpretes do samba tenha nascido justamente em Minas Gerais. Para mim e para aqueles que nos dedicamos a estudar a mineiridade, quase nada que venha de Minas configura surpresa alguma, ainda mais culturalmente. 

Foi num berço mineiro que veio ao mundo Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, a nossa “Clara Nunes”. Ela nasceu em Caetanópolis, na região central de Minas, em 12 de agosto de 1942. Começou a cantar na igreja, venceu um concurso de música na sua pequena cidade e depois se mudou para a capital mineira. Em Belo Horizonte, Clara passou a se apresentar em rádios e casas de shows.

Logo foi notada e mudou-se para o Rio de Janeiro. Em terras cariocas, nunca deixou de lado a sua mineiridade peculiar e se tornou  exímia compositora e uma referência de autenticidade dentre as cantoras brasileiras - suas grandes composições vieram após muito estudar nossa música e nossa cultura. Só mesmo uma mineira para cantar tão docemente as raízes afro do Brasil. Definitivamente, Clara não era apenas “mais uma cantora”. Sua voz tinha identidade, potência, raízes e propósito. 

Foi considerada pela revista Rolling Stone como uma das maiores vozes da música brasileira. Ela conquistou vários outros prêmios ao longo de sua curta mas intensa carreira e foi a primeira mulher a vender mais de 100 mil discos. Seu LP, Alvorecer, lançado em 1974, teve mais de 400 mil cópias vendidas em poucos dias. Caiu no gosto do povo cantando, mineiramente, a brasilidade. 

Capa do LP Alvorecer, lançado em 1974 pela Odeon.

“Se vocês querem saber que eu sou. Eu sou a tal mineira. Filha de Angola, de Ketu e Nagô. Não sou de brincadeira. Canto pelos sete cantos, não temo quebrantos porque eu sou guerreira”. Os versos iniciais da música Guerreira definem um pouco quem foi Clara Nunes. A “tal mineira” cantou a liberdade, denunciou o racismo religioso, poetizou o amor, a vida, os cantos afro-brasileiros com uma autenticidade inimitável.

O maior fã de Clara Nunes que conheci foi o senhor Hugo Silva (in memorian), o “Hugo do Pedro Silva”, como era conhecido em Itaguara. Aos sábados pela manhã, era comum vê-lo na varanda de sua casa, na Praça Raimundo de Morais Lara, ouvindo Clara Nunes, degustando um petisco e saboreando a sua cerveja predileta: a Quilmes. Por trás daquele senhor sisudo de quase 2 metros de altura, escondia-se um amante do samba, um admirador de Clara Nunes. Não era algo fácil de se supor. Senhor Hugo, bom mineiro que era, sabia muito bem se reservar com circunspeção socialmente para se revelar brasileiramente irreverente no íntimo de sua casa. Quando penso em Clara Nunes, é o senhor Hugo que me vem à mente. Quão afortunado fui por poder presenciar aqueles momentos sublimes na varanda de sua casa - ali a gente celebrava a amizade,  a mineiridade e a brasilidade ao som de Clara. Se divergíamos no espectro político nacional,  a convergência era certa no samba e no devotamento à cultura brasileira. 

Neste domingo, dois de abril, completam-se 40 anos da precoce partida de Clara Nunes, que faleceu aos 40 anos de idade. Se ela não está entre nós fisicamente, a sua música, a sua força guerreira, o seu amor pela cultura afro-brasileira e a intensidade de seus cantos permanecem resilientes em todos os que amamos e valorizamos a cultura desta nação multiplamente diversa, ricamente plural, sublime e tropical. 

Sou capaz de apostar que se as almas se encontrarem num além que guarda alguns traços daqui, o senhor Hugo está lá, ouvindo Clara Nunes, enquanto aguarda o almoço celestial. Dona Celipe já, já vai chamá-lo: “Venha Hugo, o almoço está pronto”. A Quilmes acabou. É hora de almoçar. E colocar outro disco de Clara no antigo aparelho de som.


 * Texto originalmente publicado no site Sagarana Notícias - https://www.sagarananoticias.com.br/post/a-mineiridade-de-clara-nunes-a-potente-voz-do-brasil

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