sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Universidades Públicas e Humanidades Sob Ataque

 Compartilho artigo escrito para o Jornal Cidades, publicado em agosto de 2020


Universidades Públicas e Humanidades Sob Ataque 


Alisson Diego * 


Outro dia recebi, em um respeitável grupo de Whatsapp, um vídeo produzido pela empresa Brasil Paralelo, uma produtora de extrema-direita conhecida por espalhar fake news e ligada ao estarrecedor “gabinete do ódio bolsonarista”. O filme visava grosseiramente a ridicularizar, ofender e atacar levianamente as universidades públicas brasileiras. Dentre outras insensatezes, o malicioso  vídeo diz que o Brasil não possui importância no contexto universitário global e coloca as universidades brasileiras como sendo de qualidade duvidosa. 

Como disse, o grupo de Whatsapp em questão é composto por pessoas idôneas e, até que se prove o contrário, honestas e trabalhadoras. Quando recebo conteúdos tão maliciosos oriundos de “pessoas de bem”, forço-me à indagação: o que leva pessoas assim a compartilharem esse tipo de publicação distanciada da racionalidade? 

A pergunta acima é tão somente retórica. Não ouso respondê-la porque demandaria tempo e espaço em demasia, mas, apesar de todos os problemas, percalços e riscos que a manifestação de opinião envolve, não posso deixar de ser assertivo neste momento para asseverar: cuidado, você que compartilha vídeos ofendendo as universidades públicas, está sendo manipulado. 

Uma coisa é se discutir as concessões de bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), o financiamento estudantil e o próprio papel das universidades públicas na sociedade brasileira contemporânea e outra coisa completamente diferente é o ataque puro, simplório e genérico às universidades públicas. O real objetivo desses ofensores consiste na privatização do ensino superior brasileiro e não em buscar melhorias para o ensino público. 

Uma das principais perguntas que devemos nos fazer quando recebemos qualquer conteúdo pelas redes é: de quem é a autoria? Se não tiver autor definido já é forte o indício de manipulação ofensiva, caluniosa, injuriosa e difamatória, ou pura e simples fake news, como queiram nominar. Entretanto, no caso examinado, há autoria definida: o Brasil Paralelo, que surgiu em 2016 e se notabilizou por produzir dezenas de vídeos alinhados ao extremo conservadorismo, responsável, inclusive, pela disseminação de mensagens falsas sobre fraudes nas urnas eletrônicas nas eleições presidenciais de 2018, desmentidas incisivamente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e verificadas pelo “Fato ou Fake” e outras iniciativas de checagem e validação de informações disseminadas no submundo das redes. 

De volta à temática do vídeo, digo de antemão que acho de bom tom colocarmos em pauta sempre a questão das universidades públicas e o seu papel no desenvolvimento do estado brasileiro. Ressalto que posso discorrer confortavelmente sobre este assunto, desprovido de quaisquer vieses partidários ou interesses pessoais. Jamais recebi um centavo de bolsa da Capes mesmo estudando por 7 anos em duas universidades públicas (UFMG e UFSJ), fui aprovado em processos seletivos sem qualquer cota e também obtive notas muito acima dos 600 pontos no Enem – outro aspecto questionado pelo vídeo é que nos cursos de ciências humanas são aprovados candidatos com pontuações abaixo dos 600 pontos. Ainda que eu tivesse sido bolsista em alguma universidade pública ou tivesse sido aprovado pelo sistema de cotas ou mesmo houvesse obtido menos de 600 pontos, nada disso invalidaria quaisquer de meus argumentos apresentados neste texto, mas nunca é demais ressaltar essa minha condição de absoluta imparcialidade argumentativa porque muitos tentam desconstruir argumentos com esses falaciosos ataques que acabam por confundir muita gente ingênua. 

Pois bem, de onde vêm então os ataques às universidades públicas? Essa é uma questão-chave para se compreender melhor a questão central deste texto (veja que há uma diferenciação enorme entre críticas aceitáveis e construtivas de ataques levianos e grosseiros). O Brasil Paralelo é apenas um instrumento de ofensores maiores. Via de regra, aqueles que atacam as universidades públicas são os mesmos que atacam as cotas raciais e de renda, e que no fundo não querem mesmo é ver negros e pobres ascendendo social, cultural e economicamente . Portanto, estamos diante de mais um problema tipicamente brasileiro: as velhas desigualdades sociais, o racismo e o preconceito disseminados frente as oligarquias e o seu arraigado pensamento patrimonialista e exclusivista diante do estado. “Se o governo não serve aos meus interesses, o governo não serve”, grosso modo, é assim que pensam. 

Especificamente, sobre as universidades brasileiras, é inequívoco dizer que elas precisam de amplas melhorias e reformas, sobretudo em sua infraestrutura, justamente neste momento histórico em que está em curso um claríssimo projeto de sucateamento das universidades estatais, capitaneado por pessoas que enxergam a educação como uma simples mercadoria, ignorando o papel central que devem ter no desenvolvimento nacional. 

Sobre a qualidade do ensino superior público, importante abordar os rankings universitários mundiais, mencionados no dito vídeo. Em primeiro lugar, é preciso ser dito que há dezenas deles; ao escolher um como parâmetro, deve-se conhecer pormenorizadamente os seus critérios. Tomemos como exemplo o índice avaliativo da Times Higher Education (THE), divulgado há poucas semanas. Segundo THE; entre as 20 melhores universidades da América Latina, 13 são brasileiras, com a Universidade de São Paulo (USP) em segundo lugar e a Universidade de Campinas (Unicamp) em terceiro, seguidas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O ranking avalia aspectos como pesquisa, ensino e transferência de conhecimento. O Brasil é o país com o maior número de instituições que atingiram o critério para serem avaliadas no ranking regional, com 66 no total, seguido por Chile (30) e Colômbia (23). 

Ainda sobre rankings, vale mencionar dois deles que levam em conta a relação “universidade e sustentabilidade”. Há pelo menos dois ranqueamentos internacionais que testam o comprometimento das academias nesta temática. A Universidade de São Paulo aparece no top 20 das duas listas, Impact Ranking e Green Metric. No primeiro ranking, a USP é a 14ª melhor do planeta. No segundo, está na 18ª colocação. As duas classificações obedecem a critérios diferentes. O Impact Ranking utiliza os 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015. Com base neles, observa-se: pesquisa, divulgação e governança. Além da USP, outras instituições brasileiras estão presentes no top 100 da lista. A Universidade Federal de Lavras (MG) está na 29ª posição, a Universidade Positivo (PR) ficou no 73º lugar, e a Unicamp (SP) se classificou na 80ª colocação. Já no Impact Ranking, a outra representante do Brasil entre os 100 melhores é a Universidade Estadual de Londrina (PR). Todas públicas neste ranking com exceção da Universidade Positivo. 

Este debate público é iluminado pela Constituição da República. Destaca nosso texto constitucional que o ensino superior deve promover o desenvolvimento humanístico, científico e tecnológico do país (art. 214, V, da CF/88), dentre outros objetivos. Dispõe ainda a nossa Carta Magna a respeito da garantia de ingresso no ensino superior de estudantes de classes sociais menos favorecidas, dando a eles o direito de continuarem os seus estudos, atingindo os níveis mais elevados do ensino. Importa dizer que a educação superior não visa apenas ao preparo do indivíduo para o mercado de trabalho, mas promover o pensamento reflexivo, valorizar a responsabilidade social, a cultura e os valores humanísticos, além de estimular a produção do novo conhecimento. Quando isso não ocorre, a nação fica engolfada na lógica subdesenvolvimentista. Em razão disso, torna-se elementar que o Estado garanta às pessoas as condições de ingressarem no ensino superior. 

Conforme se vê, o debate é muito mais amplo do que parece e está obnubilado por questões nada republicanas e democráticas. Convém mencionar também que considero necessária uma reforma universitária que preveja a cobrança de mensalidades para estudantes abastados. A meu ver, nada mais justo – desde que os recursos sejam revertidos para a melhoria das próprias universidades públicas. Todavia, pode-se afirmar: o interesse desses senhores que atacam as universidades estatais não é e nunca foi a melhoria do ensino público, mas tão somente a mercantilização completa da educação e a financeirização e produtivização da vida. 

Não posso deixar de observar que é curioso que os ataques às universidades públicas venham, quase sempre, acompanhados de ríspidas ofensas aos cursos da área de humanas. Isso não se dá por mero acaso (ou por mera posição corrompida de um utilitarismo de ocasião), uma vez que são as humanidades que questionam a ordem vigente. Qual o papel da filosofia, da sociologia e das humanidades de forma geral? Qual o papel dos pensadores? Em síntese, consiste em transpor as limitações do pensar por meio da reflexão crítica acerca do ser humano, do mundo e da sociedade, valendo-se de métodos e análises filosóficos, sociológicos, antropológicos etc. Eles (os donos do poder e a elite brasileira) odeiam a crítica e não suportam questionamentos, sejam eles quais forem. Eles não toleram a diversidade e a existência de qualquer pensamento crítico. E é justamente o pensar crítico a razão mesma de ser da filosofia, da sociologia e das humanidades. Afinal de contas, de que vale a vida sem a reflexão, como se fôssemos robôs ou seres inanimados? 

Nunca é demais lembrar Sócrates que, pouco depois da decretação de sua sentença de morte, disse uma das frases mais célebres da história da filosofia e da humanidade – que é ao mesmo tempo uma admoestação e uma exortação: "a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. 

Não vale mesmo. 


Alisson Diego Batista Moraes, advogado, bacharel em Filosofia pela UFMG, MBA em Gestão de Empresas pela FGV e mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi prefeito de Itaguara entre 2009 e 2016.


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