Prefácio
Alisson Diego Batista Moraes
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| Foto: Ana Luiza Vale e Saíd Bizerra Da Silva/Acervo Pessoal |
O que significa conservar? Que ideia de humanidade se afirma quando escolhemos devastar ou proteger? Quem consideramos digno de existir quando desenhamos nossas cidades, ocupamos os territórios, escrevemos as leis, calculamos as margens de lucro? Este livro nasce no cruzamento dessas questões. Ele não fala apenas de insetos, aracnídeos ou gestão das Unidades de Conservação; ele aborda o mundo, a vida e nos faz refletir eticamente.
O ambiente é condição, é trama, é relação. Hans Jonas lembrava a urgência de uma ética da responsabilidade diante das gerações futuras; é a “ética da terra” que nos enxerga como curadores do ambiente e co-viventes da Casa Comum, como lembrou muito bem o saudosíssimo Papa Francisco.
Vale também rememorar Ailton Krenak e sua vida-obra em prol da mensagem tão óbvia quanto olvidada: o primado da vida diante do lucro e da exploração. Ele nos convoca a abandonar a fantasia de que somos senhores separados da vida, para reconhecer que “não existe humanidade sem rio, sem floresta, sem montanha”. Em sintonia com esse horizonte, este livro recusa a miopia utilitarista que só enxerga valor naquilo que produz lucro imediato. Aqui, a vida “pequena”, invisibilizada, frequentemente temida ou desprezada – as vespas, as libélulas, os opiliões, os artrópodes dos campos, veredas e matas – ocupa o centro da narrativa científica e política.
Escrevo este prefácio enquanto estou na Galícia, e nãodeve ser por acaso. Os acasos, quando muito, organizam o cenário; o sentido quem dá somos nós. Aqui li uma frase de Alfonso Daniel Rodríguez Castelao (1886-1950) que me marcou muito e que poderia servir como epígrafe silenciosa deste livro: “Vale máis unha terra con árboresnos montes ca un estado con ouro nos bancos” (“Vale mais uma terra com árvores nos montes do que um Estado com ouro nos bancos”, em tradução livre do galego). A sentença, embora nascida de outra geografia e de outra história, converge integralmente com o espírito que atravessa estas páginas: a verdadeira riqueza de um povo não se mede em reservas financeiras, mas na integridade viva de seus territórios, na permanência das florestas, na saúde de seus rios, na biodiversidade e as paisagens.
Estamos diante de uma escolha civilizatória crucial: ou reconhecemos que proteger a biodiversidade é condição de justiça social, soberania alimentar, estabilidade climática e dignidade coletiva, ou aceitaremos o colapso como preço normalizado do lucro imediato. Este livro transforma 13 anos de pesquisa rigorosa em linguagem acessível e comprometida e demonstra com fatos o que Castelao condensou em aforismo: um país com árvores em pé, águas protegidas e vida respeitada vale mais do que qualquer fantasia de prosperidade assentada sobre bancos cheios e biomas esvaziados.
A escolha metodológica e ética que estrutura esta obra é clara: olhar com rigor aquilo que o senso comum ignora; transformar seres tratados como incômodos em chave de leitura para compreender a saúde dos ecossistemas, a qualidade da água, o equilíbrio climático, a resiliência dos territórios. A pesquisa sobre artrópodes, tal como desenvolvida por Marcos Magalhães de Souza e sua equipe, é um ato de resistência epistêmica e política frente ao avanço da destruição ambiental, do negacionismo e das formas mais brutais de mercantilização da vida.
Conheci o professor Marcos quando ainda estava no ensino médio. Naquela sala do Colégio São José, na cidade de Barroso, entre lâminas, livros e a curiosidade juvenil, aprendi com ele algo que nunca mais esqueci: unirteoria e práxis. Ele nos ensinava biologia e ensinava também uma ética do comprometimento com a vida. Levava-nos ao campo, explicando sobre as matas ciliares, a riqueza da biodiversidade em ecossistemas aparentemente desimportantes. Professor Marcos, vocacionado como poucos ao ensino, ensinou-nos mais de biologia que o mais renomado dos manuais. A vocação prematura hoje está amadurecida com os cursos e os anos todos de pesquisa e o professor continua a nos ensinar a harmonizar o compromisso público com a ciência. Este livro é mais uma prova inconteste disso.
Fruto de anos de trabalho continuado em Unidades de Conservação de Minas Gerais, envolvendo laboratórios, Institutos Federais, equipes de campo, estudantes que se transformam em pesquisadores, parcerias que atravessam biomas e municípios. Ele apresenta, em linguagem acessível e visualmente instigante, uma síntese rara: transforma um acervo robusto de artigos, relatórios, saídas de campo e ações de extensão em um instrumento público de conhecimento, aberto à comunidade.
Em essência, este livro concretiza a vocação dos Institutos Federais como espaços onde o ensino, a pesquisa e a extensão se articulam em favor da sociedade. Ao reunir a produção técnica e acadêmica, a formação de estudantes, as atividades de campo, as ações de extensão e o diálogo com comunidades do entorno das Unidades de Conservação, os autores devolvem à população aquilo que foi construído ao longo de anos de trabalho: conhecimento aplicado, confiável e socialmente comprometido.
A obra se organiza de forma cuidadosa, guiando o leitor por um percurso que combina profundidade científica e clareza didática. Após situar o contexto da pesquisa e dos biomas, o livro se abre com uma seção que reconstrói a luta pela produção de conhecimento sobre a Caatinga, o Cerrado, o Campo Rupestre e a Mata Atlântica. Ali se mostram as ameaças históricas, a pressão contemporânea sobre os ecossistemas, o papel dos Institutos Federais e a necessidade de olhar para a fauna de insetos e aracnídeos como indicador sensível da integridade ambiental.
Em seguida, o leitor é conduzido por capítulos dedicados a diferentes Unidades de Conservação estratégicas, como o Parque Estadual Serra do Papagaio, o Parque Estadual do Ibitipoca, a Área de Proteção Ambiental do Rio Machado, o Parque Estadual da Mata Seca, o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, o Parque Nacional das Sempre-Vivas, o Parque Estadual do Itambé, a APA Fernão Dias, entre outras áreas de proteção integral e de uso sustentável. Cada capítulo apresenta brevemente a história e o enquadramento legal da UC, caracteriza seus ambientes, explicita os esforços de campo realizados e, sobretudo, traduz em linguagem clara os resultados de inventários e estudos ecológicos com vespas sociais e solitárias, libélulas, opiliões, aranhas, borboletas e outros grupos-chave. Mapas, fotografias, quadros e referências aos artigos publicados são pontes entre a pesquisa acadêmica e a compreensão pública da importância desses territórios.
Ao longo desses capítulos, o leitor percebe que não se trata de um álbum descritivo ou de um catálogo frio. Cada área de conservação é apresentada como um laboratório vivo, um observatório privilegiado das relações ecológicas e das tensões com atividades humanas. Os dados sobre novas ocorrências, espécies raras, registros inéditos de comportamento, interações de predação, uso de ninhos e respostas às variações sazonais vão compondo um painel que evidencia o quanto a biodiversidade minúscula sustenta a estabilidade dos sistemas maiores. As sínteses parciais dialogam entre si e desembocam em uma visão integrada: mostram como o conjunto de pesquisas, distribuídas em dezenas de trabalhos, gera parâmetros concretos para formulação de políticas públicas, delimitação de áreas prioritárias, gestão adaptativa e educação ambiental crítica.
autores. Marcos Magalhães de Souza, Gabriel de Castro Jacques, Taiguara Pereira de Gouvêa e Gabriel Teófilo Guedes Silva compõem uma autoria coletiva que traduz, em livro, o melhor sentido da educação pública: pesquisa rigorosa, compromisso territorial e devolução social do conhecimento.
Unidades de Conservação são frequentemente apresentadas ao debate público como obstáculo ao “progresso”, barreira burocrática ao agronegócio, à mineração, à ocupação desordenada. Ao contrário, o que esta obra revela, com dados robustos, é que essas áreas são infraestruturas vitais: guardam nascentes, regulam o clima, protegem espécies, sustentam modos de vida, oferecem base objetiva para políticas de adaptação às mudanças climáticas e uso racional do território. Quando se destrói um parque, uma mata seca, uma vereda, não se está apenas alterando uma paisagem; está se corroendo a segurança hídrica, a produção de alimentos, a saúde coletiva, a possibilidade de um futuro comum, de uma comum unidade.
O mérito deste trabalho está precisamente em articular ensino, pesquisa e extensão com um sentido público muito claro. Cada artigo produzido, cada nova espécie registrada, cada comportamento descrito, cada ação educativa em escolas, cada conversa com comunidade local, cada fotografia apresentada ao público amplia o perímetro da consciência coletiva. Ao trazer o leitor para dentro das UCs, o livro rompe a distância entre “campo” e “cidade”, entre “especialista” e “sociedade”, entre “pequenos bichos” e grandes decisões.
Ao mesmo tempo, a obra oferece uma mensagem incômoda, como deve ser todo bom trabalho científico comprometido com a realidade: o que se conhece ainda é pouco diante da velocidade da destruição. Muitas das espécies aqui registradas, muitas das interações ecológicas descritas, muitos dos ambientes estudados existem hoje sob pressão intensa. Esse contraste entre a delicadeza do conhecimento produzido e a brutalidade das ameaças reforça a dimensão ética deste projeto: é inaceitável que um país com a riqueza biológica e cultural do Brasil naturalize a perda contínua dos seus biomas, capture instituições públicas pela lógica imediatista do mercado e trate a ciência como ornamento dispensável.
Ao ler estas páginas, o gestor público sério encontra evidências para defender Unidades de Conservação em conselhos, audiências, planos diretores e orçamentos. O professor encontra material para trabalhar com seus alunos uma visão complexa de biodiversidade, para além de listas superficiais. O pesquisador encontra base, método e inspiração. O cidadão comum encontra um convite claro: compreender que a defesa desses ambientes não é pauta de nicho, mas questão de sobrevivência coletiva.
Este livro oferece ao leitor um mapa poderoso: mostra onde estamos, o que sabemos, o que podemos perder e o que ainda podemos salvar. Cabe a nós, gestores, pesquisadores, educadores, estudantes, lideranças comunitárias, povos originários, sociedade civil organizada e cidadãos, fazer desse conhecimento um instrumento de decisão e de mudança.
Não se separa espiritualidade, política e terra. Davi Kopenawa nos adverte que, se continuarmos a tratar a floresta e os seres que nela vivem como “coisas” para serem arrancadas, o céu pode desabar sobre nossas cabeças. Não é metáfora inocente. A ciência apresentada neste livro mostra, com outros códigos, o mesmo aviso.
Que estas páginas fortaleçam aqueles que, como os pesquisadores Marcos, Gabriel de Castro, Taiguara e Gabriel Teófilo Guedes Silva, escolhem segurar o céu com o trabalho sério, com a pesquisa comprometida, com a formação de novas gerações e com a defesa intransigente das Unidades de Conservação. Que este livro circule muito, em escolas, universidades, órgãos ambientais, prefeituras, movimentos sociais, para que ninguém possa dizer, amanhã, que destruiu por ignorância.
Com estima intelectual, respeito público e amizade,
Alisson Diego Batista Moraes
Santiago de Compostela, novembro de 2025.
