Artigo publicado originalmente no Portal da Rádio Itatiaia em 30/06/2025 e disponível neste link: https://www.itatiaia.com.br/colunas/as-velhas-praticas-politicas-o-vale-tudo-eleitoral-e-as-dividas-das-prefeituras
O Brasil já sabe como esse filme termina, mas insiste em reexibir o mesmo roteiro: vale tudo para vencer a eleição, inclusive endividar o município. Ano eleitoral chega com promessas fáceis, obras aceleradas, contratações eleitoreiras e o uso escancarado da máquina pública para garantir voto. O saldo pós-urna é conhecido: cidades endividadas, serviços públicos comprometidos e deficientes, rombo crescente nas contas públicas e a população desassistida logo depois da eleição.
Dados do Tesouro Nacional, divulgados nos últimos dias, jogaram luz sobre o tamanho do problema. Em 2024, quase três mil prefeituras gastaram mais do que arrecadaram. Não estamos falando de acidente, nem de imprevisto. O padrão se repete a cada ciclo: gasta-se além do que se pode para atender aos interesses imediatos do calendário eleitoral. Quando as urnas se fecham, sobra a conta, o arrocho e, quase sempre, o retrocesso nas políticas públicas.
Mais da metade dos municípios brasileiros encerrou o ano com déficit nas contas públicas. O saldo acumulado das prefeituras chegou a 57 bilhões de reais. E, além do desequilíbrio entre receita e despesa, chama atenção o nível recorde de endividamento em pleno ano eleitoral. Em 2024, as prefeituras contraíram 6,1 bilhões de reais em novos empréstimos bancários, o maior valor já registrado nesse tipo de operação. Nunca tantas cidades recorreram ao crédito como no último ciclo, somando 33 bilhões de reais em dívidas junto a instituições financeiras. Em muitos casos, a principal garantia oferecida pelos prefeitos para conseguir o dinheiro foram os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que deveriam servir, prioritariamente, para manter serviços essenciais como saúde e educação. O dinheiro dos empréstimos turbina o caixa no curto prazo, facilita a entrega de obras e programas às vésperas das eleições, mas deixa uma fatura longa, que recai inevitavelmente sobre os sucessores e, no final das contas, sobre a própria população.
Cabe uma ressalva: toda análise sobre o equilíbrio ou o desequilíbrio das contas públicas exige cautela. Um resultado negativo num ano isolado não significa, necessariamente, que a prefeitura está quebrada. É preciso olhar o filme inteiro, não apenas o retrato do momento. Muitas vezes, o município acumula superávits de anos anteriores (como aconteceu com Nova Lima-MG, por exemplo) e opta, com base em planejamento, por utilizar parte desses recursos em investimentos ou programas pontuais.
Os números não têm ideologia. Ou são positivos, ou são negativos. Superávit e déficit não têm cor partidária, não escolhem lado, não respeitam discurso. Nesse retrato dos 52% de municípios com as contas negativas, há prefeitos e prefeitas de todas as matizes e partidos. Muitos gestores públicos deste país precisam aprender que não existe milagre fiscal, o que deve haver é planejamento, responsabilidade e, acima de tudo, respeito com o dinheiro público e com a população.
É verdade que algumas cidades conseguiram fechar o ano com dinheiro em caixa. Pouco mais de duas mil prefeituras apresentaram superávit em 2024. E aqui vale um alerta: superávit não é vaidade técnica, nem número bonito para enfeitar rede social. Significa capacidade real de investir, de transformar promessa em política pública, de melhorar o ambiente urbano, de criar mais oportunidades e de cuidar das pessoas. Claro que ninguém está defendendo que prefeitura vire banco ou que o dinheiro público fique parado, engordando saldo em conta. O recurso precisa circular, gerar investimento, melhorar a vida das pessoas. Mas isso só acontece quando existe equilíbrio e, principalmente, quando há planejamento. Sem responsabilidade fiscal, não há progresso, há promessa vazia, dívida acumulada e a conta, como sempre, nas costas do povo.
O ano de 2024 escancarou o custo dessa velha prática: contas desequilibradas, investimentos comprometidos, cidades atoladas em dívidas e promessas não cumpridas. O uso político da máquina pública já virou padrão e o calendário eleitoral vale mais do que o planejamento de longo prazo. No final, o saldo não é só financeiro, mas também institucional: fica o descrédito, a paralisia, a sensação de que a cidade parou enquanto a politicagem segue correndo atrás de voto.
O mais desanimador é que essa “estratégia” imoral e irresponsável funciona. As reeleições bateram recorde nas eleições municipais de 2024. Segundo dados do TSE, 2.461 prefeitos conseguiram se reeleger, um índice de 82% de sucesso entre os que tentavam um novo mandato. O número é ainda maior quando se olha além da reeleição direta: muitos dos que não puderam concorrer em razão dos limites legais emplacaram seus sucessores, garantindo a continuidade dos grupos políticos e, em muitos casos, dos mesmos vícios (e da mesma fatura).
O Brasil precisa amadurecer sua relação com o dinheiro público. Não dá mais para aceitar que, a cada eleição, o calendário político ignore o bom senso e atropele o planejamento e o futuro das cidades. Superávit não é luxo, nem fetiche contábil, é o mínimo necessário para a máquina pública funcionar com dignidade e propiciar investimento de médio e longo prazo. Já o déficit, disfarçado de investimento, é o tipo mais perverso de irresponsabilidade.
Como sempre: as eleições passaram, a conta ficou. E quem vai pagar, mais uma vez, é o povo.